Se for pra chorar, que seja de alegria é o título da recém-lançada publicação do autor Ignácio de Loyola Brandão, que aos 80 anos recebe o prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra. Com lançamento pela Global Editora, o autor reúne nesta publicação 41 crônicas escritas durante a sua carreira no Caderno 2, do jornal O Estado de São Paulo, e na Tribuna de Araraquara. No dia 27 de julho, a partir das 18h30, na livraria Martins Fontes (Av. Paulista, 509) em São Paulo, o autor participará de um evento de lançamento da obra.
Como estamos no Rio de Janeiro (assim como muitos de vocês, também fora de São Paulo), e do autor conhecemos crônicas de outros tempos, nesta postagem compartilhamos alguns de seus saudosos textos, e também o release de mais este lançamento literário.
80 perguntas sem resposta. Se fossem 1.000 seria igual
1.
Foi por causa de uma frase, um olhar, um cheiro, um barulho incômodo, um gesto brusco, uma comida que deixei queimar, um livro que desmarquei, o tubo de pasta que apertei demais, um brinco de sua avó que estava em meu bolso e perdi, um elevador que encrencou, um carinho que não fiz num dia de carência, ter usado o horrível pijama de bolinha, uma carta a que me esqueci de responder (quase impossível comigo), um filme vagabundo que te levei a ver, uma mancada sem identificação, a falta de sol, a escolha de uma cor de mau gosto, uma flor que não trouxe, um peido inconveniente, o relógio que parou, uma trepada não dada por cansaço, um copo de cerveja derramado em seu colo, a meia que não combinava, um número de telefone que não soube explicar, um erro no saldo do canhoto de cheque, um ônibus atrasado, um jornal de ontem, um cigarro mal apagado no cinzeiro, os cabelos que deixei no sabonete, uma troca de nomes, um lençol mal dobrado na cama, o silêncio depois de uma reportagem suada, o não ter pego em sua mão no teatro, o olhar inadvertido que lancei àquela mulher, a brincadeira com o avião (acredita que eu ia te matar?), uma fotografia velada, as férias goradas por excesso de trabalho, um programa de tevê que não deixei você ver por causa do meu futebol, uma troca de letras, o tanque de gasolina vazio num domingo, uma resposta brusca, uma dormida no seu travesseiro de paina, o não ter acreditado nos carocinhos dos teus seios, um palavrão grosseiro, um sabor errado de sorvete, o suco de abacaxi de garrafa, em vez do natural, na mistura com Steinhagen, um assobio agudo nos seus ouvidos, um sapato que rangia, um tropeção no seu pé, uma barata que não matei, os quadros que não pendurei, o ter contado o fim do romance policial, uma tesoura sem corte, as bobagens que comprei no supermercado, esquecendo o essencial, o não saber dirigir um balão, a mola do colchão que estourou cutucando sua costela, um embrulho para presente muito malfeito, um bilhete que não deixei, o gás que faltou, ter manchado de porra a tua saia nova, ter pedido para maneirar na velocidade por causa das minhas filhas que iam atrás, a geladeira vazia quando você chegou de viagem, não ter gritado saúde quando você espirrou, um susto incidental, o ter demorado para abrir a porta, o vinho que não trouxe, o recado que esqueci de dar, um lápis sem ponta, a falta de água num dia de calor, um vestido de que não gostei, ter ficado demais lendo no banheiro, uma gozação inoportuna, uma gargalhada escandalosa em momento solene, uma planta que secou, os óculos embaçados, uma rua que errei, a cara emburrada num dia de mau humor ou um beijo que só veio da boca?
2.
Agora, você me odeia?
(Trecho de crônica publicada em Se for pra chorar, que seja de alegria)

Gestada na linha tênue entre o que foi e o que poderia ter sido, a crônica é tocada pelo calor do momento e, mesmo que seu autor não se dedique a radiografar um acontecimento naquele instante, lá está o tempo a tingi-la com suas cores, sabores e odores. Mas para que a crônica fique no coração de quem a lê e se torne uma manifestação perene, consagrando-se, assim, como uma espécie de tradução universal e eterna da condição humana, é preciso ainda mais. É preciso que ela envolva o leitor, como uma serpente envolve sua presa, e que ela o conduza a situações inusitadamente atraentes, algumas delas cheias de riscos e, mesmo assim, fascinantes. Como não poderia deixar de ser, esse é o timbre das crônicas deste livro. São olhares e percepções impressos em textos que retratam as viagens que Loyola fez pelo Brasil inteiro.
Segundo o próprio autor, essa obra é uma de suas seleções mais gostosas, mais felizes e mais divertidas. Algumas dramáticas, porque é preciso um pouco de drama. Um livro direto para o coração do leitor, um presente de 80 anos para toda a gente que o acompanha há tantos anos.
Sobre o autor: Ignácio de Loyola Brandão nasceu em Araraquara (SP), em 31 de julho de 1936. Jornalista e escritor, Brandão publicou dezenas de livros, entre romances, contos, crônicas e viagens, além de ter participado de várias antologias. Filho de um ferroviário, tornou-se crítico de cinema aos 16 anos, quando soube que crítico não pagava entrada em cinema. Assim enveredou pelo jornalismo. Em 1957, mudou-se para São Paulo e foi trabalhar no jornal Última Hora como repórter. Estreou com um livro de contos sobre a noite paulistana, Depois do Sol. Seu primeiro romance, Bebel que a Cidade Comeu, foi publicado em 1968. Em 1974, foi lançado na Itália o romance Zero, sua obra mais conhecida. Editado no Brasil no ano seguinte, o livro foi proibido em 1976 pelo Ministério da Justiça do governo Geisel. A obra só seria liberada em 1979. Em 1993, iniciou colaboração semanal no jornal O Estado de S.Paulo. Em 1996, submeteu-se a uma cirurgia para a retirada de um aneurisma cerebral e registrou a experiência no livro Veia Bailarina, em 1997. Tendo como cenário a ditadura militar e o exílio, sua obra romanesca faz uma crítica amarga da sociedade brasileira, mas também fala de amor e solidão. Em julho de 2001, por ocasião de seu aniversário, foi homenageado pelo Instituto Moreira Salles, com a publicação de sua vida e obra no volume 11 da série Cadernos de Literatura Brasileira. Em 2008 o romance O Menino que Vendia Palavras ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de ficção do ano. Em suas crônicas, são frequentes as referências à infância em Araraquara, aos colegas de geração e ao cotidiano da cidade de São Paulo.
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