"- Somos adultos agora. Supostamente. E sentimos menos as coisas do que quando éramos crianças, porque temos muitas cicatrizes, ou nossos sentidos ficaram embotados." (p. 278)
Sob a lente dos óculos, o mundo parece disforme. Diante das escarificações, temos certeza disso. No livro de Charlie Jane Anders, tudo começa com o esvaziamento da infância, este intervalo entre o sonho e a crueldade de toda vida. Neste lugar despertencido, somos apresentados a Laurence e Patrícia, ainda crianças, que desde cedo compreenderam que o deboche, a inadequação e o pouco sorriso por vezes insistem em permanecer. Seja no ambiente da escola ou no interior da família, o cotidiano nem sempre é todo abraços, e a solidão de cada um passa a ter a cor de um teto vazio.
Na primeira parte do livro, o sofrimento de nossos personagens parece inevitável, e não é preciso conhecer poesia pra saber disso. Já no livro dois (a autora divide a história em quatro partes, e de algum modo segue uma cronologia), o choro já não cabe mais, e um sentimento amargo preenche os dias de Laurence e Patrícia, que buscam um no outro aquele amparo que o mundo esqueceu de lhes oferecer.
Por mais intenso e triste que seja este cenário, os dois primeiros livros-capítulos da autora são também repletos de belas reflexões sobre a natureza das coisas; é como se Laurence e Patrícia precocemente entendessem que é preciso suportar o inevitável, e superar a melancolia, para então habitar esse tal mundo a ser contruído por eles mesmos. Há toda uma expectativa pela vida adulta, onde, acredita-se, estaremos (Laurence e Patrícia e nós mesmos) libertos desta estação chamada sofrimento.
Em meados do Livro 2, a autora provoca um salto temporal em sua narrativa, de forma brusca até, infiltrando na história novos personagens e corpos e sensações, de modo que a ingenuidade da infância se apresenta agora como uma afeição desajeitada, meio assim inconsequente, que faz com que Laurence e Patrícia se tornem agora estranhos, embora desejantes, desejosos de carne, aceitação e sucesso.
Enquanto leitores, talvez haja estranheza nesta mudança de ambiente: se por um lado Patrícia encontra uma possibilidade de fuga e crescimento ao ingressar em uma nova sociabilidade (a saber: quando criança, a menina compreendia os seres da natureza, compartilhando até de sua linguagem, e de algum modo prevendo que a magia seria parte irrestrita de sua vida -- sim, cabe o parênteses: Charlie Jane Anders abraça toda uma "herança" J. K. Rowling em sua narrativa, inclusive inscrevendo Patrícia em uma escola de aprendizes de magos e bruxas), Laurence desenvolve habilidades científicas realmente admiráveis, ainda que possivelmente destrutivas (quando criança, Lau havia compreendido os princípios da robótica, além de desenvolver uma paixão por foguetes e realidades extraterrenas; quando adulto, no entanto, este conhecimento chegou aos limites da inconsequência); embora opostos em seus cotidianos e personalidades, ambos ainda guardavam esta "alguma coisa" que os unia; uma espécie de pertencimento indescritível.

O Livro Três permanece invocando distâcias temporais, ainda que apresente unicamente a vida quase adulta de Laurence e Patrícia. Novos personagens, novas cidades e um ou dois sentimentos antigos ainda escorregam pela narrativa, sempre a lembrar a luta de Laurence e Patricia pela invencibilidade e sobrevivência.
É preciso um apocalipse para restaurar a gentileza. E em Todos os pássaros no céu isto ocorre literalmente, especialmente quando chegamos ao quarto livro (sim, caros leitores, não chega a ser um spoiler, mas a desolação vivida na infância de nossos protagonistas se transforma em desastres nada metafóricos, e este é um ponto um tanto confuso da narrativa). No entanto, ao terminarmos a leitura, todo o sentimento de caos e exaustão proporcionado pela história (o quarto livro é extremamente intenso, seja através das dificuldades impostas à Patrícia em suas missões e taferas enquanto jovem bruxa, como na gestão de conflitos e cataclismas presentes na comunidade científica em que Laurence habita) se transforma em algo ainda mais esquisito: na penúltima página do livro, na seção de Agradecimentos, a autora simplesmente aponta o dedo para sua audiência e diz: "olha, se você não gostou ou não entendeu a história, acho que vou ter que desenhar pra você, né".
Certamente não posso afirmar as intenções de uma autora que conheci apenas ao longo de muitas páginas de ficção; no entanto, pareceu-me que as dores da autora, não esgotadas por meio de suas personagens, refletiu em um sentimento antecipado de defesa, em uma espécie de "muralha anti-críticas" tão (infelizmente) comum ao ambiente literário-criativo em que vivemos.
Em minha opinião, e só posso falar desta, uma obra literária de ficção (e literalmente de "ficção", com um inventário de bruxas e apocalipse e tudo mais) deveria continuar sendo apenas uma obra literária de ficção, e não incorrer em desamores próprios e/ou políticos de seus autores.
Em tempo: em um mundo onde um "aceita que dói menos" é o único argumento, a única réplica possível é um "não sou obrigada".
Enfim, não quero me estender neste desafeto, até porque Todos os pássaros do céu, apesar de seus muitos pesares, é ainda uma boa história, e merece nossa atenção. No entanto, até que a experiência me prove o contrário, permanece a insensibilidade da autora no trato com seus leitores. Vida que segue.
"Talvez eu esteja fazendo o que eu posso", respondeu Peregrino. "Talvez eu esteja tentando entender as pessoas, e ajudá-las a se apaixonarem seja um jeito de conseguir uma noção melhor de seus parâmetros. Talvez aumentar o nível agregado de felicidade no mundo seja uma maneira de tentar impedir a destruição". (p. 421)
Sinopse: Uma grandiosa história de amor, ficção científica e
fantasia. Desde pequenos, Patrícia e Laurence tinham formas diferentes –
e às vezes opostas – de enxergar o mundo. Patrícia podia falar com
animais e se transformar em pássaros. Laurence construía
supercomputadores e máquinas do tempo de dois segundos. Enquanto
tentavam sobreviver ao pesadelo interminável da escola, seu isolamento
se transformou em uma amizade cautelosa. Até que circunstâncias
misteriosas os separam para sempre. Ou assim eles pensavam. Dez anos
depois, ambos se reencontram em São Francisco. O mundo está prestes a
implodir. Patrícia é formada em uma secreta escola de magia, e Laurence é
um cientista tentando salvar a humanidade. A medida que os dois se
reconectam, se veem levados a lados opostos em uma guerra entre ciência e
magia. E o destino do mundo depende dos dois. Ou não. Uma profunda,
mágica e divertida análise sobre a vida, o amor e o apocalipse.
Oie gente, tudo bem?
ResponderExcluirNossa, eu tinha um impressão bem diferente desse livro! A autora realmente foi bem infeliz nesse comentário dela... O livro estava na minha lista desejos, agora nem sei se quero mais! Adorei a resenha completa e sincera!
Com Carinho,
Ana | Blog Entre Páginas
www.entrepaginas.com.br