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fevereiro 04, 2016

[Resenha] Rádio Beatles, de Clara Arreguy



Eu, Caio, aceito me casar com esta mulher. Eu, Caio, levanto, caio novamente. Eu, Caio, em mim, um dia, será? Eu, Caio, caso e tombo. Eu, Caio em tentação, mas nunca caí. Eu, Caio, eu levanto. Eu, Caio, não quero fazer aniversário.

(Rádio Londres, p.81)


[Intro]

No canto do armário, próxima à coleção de jogos de tabuleiro e fotografias, em uma antiga caixa de tênis estava a rima de sua juventude: nas páginas de um caderno rasurado, pequenas partituras, ideias para canções, solos e um amor hoje arrancado de seu refrão preferido. Tinha dezessete anos quando decidiu que a música ocuparia um lugar maior que o futebol e as aulas de inglês. Quando garoto, só pensava em ser atleta. Talvez pela eterna influência da Copa de 70, dos jogos do Botafogo com o avô ou ainda pela vontade de fazer parte de uma história inesquecível.

Em seu último ano na escola, percebeu que os hematomas do esporte não o levariam muito longe: por ter passado tempo demais nas quadras, chegou até a esquecer que o amor deveria fazer parte da juventude, e não só a adrenalina. Certo dia, chuteiras e suor nas mãos, chegou em casa e encontrou o pai hipnotizado, atento à voz que na segunda faixa do album Rumours dizia:

But listen carefully to the sound
Of your loneliness
Like a heartbeat ... drives you mad
In the stillness of remembering what you had
And what you lost ...
And what you had ...
And what you lost...


E foi neste momento que Bruno descobriu a guitarra e lembrou-se de uma garota chamada Maria Luiza.


[Repeat]

Às vésperas de seu aniversário de cinquenta anos, Caio, que poderia chamar-se Bruno ou pertencer à nossa família, inicia um relato nostálgico de sua juventude, onde a passagem do violão com os amigos à responsabilidade do casamento e da engenharia foi o segundo dos fatos mais importantes de sua narrativa. O primeiro, ainda que impossível de precisar, teve início com o rádio e os discos de família, que entoavam canções desta que viria a ser a trilha sonora de sua vida.

A cada recordação, um acorde dos Beatles, e foi por uma jovem de nome Rosa que Caio dedicou suas melhores estrofes. Há anos trinta anos casados, juntos na pequena cidade de Muriaé, a criação dos filhos (João, Paulo e Jorge) também foi orientada pelos passos da beatlemania.

Dentre as confissões de Caio, o dia em que foi anunciada a separação dos Beatles tornou-se um grande desalento. Em meio aos parabéns por mais um ano vida hoje, esta tristeza é novamente rememorada, em uma retrospectiva que soa como a reprise de dois ou três acontecimentos: She loves you, yeah yeah yeah. Oh, love me do. Yeah, love me do. She loves you... E nesta melodia de versos seguem, Caio e Rita, em cantos por ora melancólicos, porventura inesquecíveis.


[Bridge]

And what you had... Em uma época de cabelos compridos, Malu, de olhos ainda mais castanhos que os de Bruno, ao invés de amor dedica-se a ambiciosas estrofes, destas que não esperamos ouvir de uma menina de dezoito ou quinze. Bruno, que sempre sonhara com canções e permanências, não compreende as estradas de Malu, e neste embate entre a fuga e a proximidade o que resta é um projeto de amor a cada dia reescrito.

Enquanto isso, em uma época de cabelos grisalhos, Caio retira do bolso uma segunda memória, que na verdade anterior a tudo o que nos últimos anos construíra. Talvez uma memória falha, mas hoje muito viva, preenchida pelo aroma e o som de um baile, onde com uma juvenil paixão compartilhou uma dança...


[Refrão]

Haveria disfarce para o coração? It's been a hard day's night...


[Solo]

As histórias de Bruno e Caio talvez não sejam assim tão diferentes. Em Rádio Beatles, a autora Clara Arreguy apresenta para o leitor uma espécie de ficção-biográfica onde aquela memória de menino, repleta de juventude e descobertas, nem sempre bate à porta, mas simplesmente invade nossos pensamentos, não importando se às vésperas de um aniversário ou à leitura de um simples caderninho. Por entre as batidas de um solo ou de uma solitude, o coração deixa-se mesmo embarcar e, nestes desvios, é importante saber que nem sempre reencontraremos o caminho...

Em uma escrita minuciosa porém leve, não há como não imediatamente nos identificarmos com a história de Caio, que de tão familiar compartilhamos aqui também a de Bruno, por nós reinventada, pois que de algum lugar também revivida.


[Fade Out]

Finda a lembrança e as canções, em meio à independência do amor e dos filhos, Caio, assim como Bruno, resgatam de suas gavetas histórias que o tempo fez questão de empoeirar. Sobre nosso personagem de Rádio Beatles, foi às vésperas de seu aniversário que descobriu a melancolia, e foi através de uma canção movediça, Hello, Goodbye, que recebeu o seu primeiro Parabéns, e quiçá um escape para um precipício.

Na manhã seguinte, junto aos restos de bolo em cima da pia, basta abrirmos os olhos para ouvir dos lábios de Caio uma nova melodia:  Retirem-me os anos e a infância, só não retirem de mim a memória de minhas canções...


[Repeat]


Clara Arreguy. Rádio Beatles. Outubro Edições, 2015

3 comentários:

  1. Reb, qualquer elogio que eu faça à tua escrita, vai ser um eufemismo barato. Cada vez me surpreendo mais com esse teu lado "Humanas" de descrever a vida. Sou fã!!!! <3
    Bjo, bjo.
    ameninaquenaoparadeler.blogspot.com.br

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  2. Eita que resenha maravilhosa menina Rebeca.
    Ainda estou apaixonada pela capa desse livro e agora curiosa pra ler essa história <3
    Só amor.

    Beijos,
    Paloma
    surewehaveablog.com.br

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  3. Ai Rebeca, vou ter que concordar com a Regiane, sua escrita é maravilhosa sabia? Faz tudo parecer Poema <3
    Eu amo a capa desse livro, e amei mais ainda a sua resenha! Estou curiosa quanto a história viu?! Acho que minha listinha vai crescer mais ainda haha

    Um grande Beijo!
    Ana | Blog Entre Páginas
    www.entrepaginas.com.br

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