Minha vida está nos meus versos.
Terra
Um poço de memórias, estanques como um texto, que por vezes poesia: nesta procura por águas, o corpo torna-se áspero, sedento como um solo ou um desejo. Ao distanciar-se da foz, perde-se pela cidade, que hoje não mais lembrança, apenas ruína.
Homem
Silêncio
A curta vida de nossos antepassados
Wislawa Szymborska
Não eram muitos os que passavam dos trinta.
A velhice era privilégio das pedras e das árvores.
A infância durava tanto quanto a dos filhotes dos lobos.
Era preciso se apressar, dar conta da vida
antes que o sol se pusesse,
antes que a primeira neve caísse.
Meninas de treze anos gerando filhos,
meninos de quatro rastreando ninhos de pássaros na moita,
jovens de vinte servindo de guias nas caçadas -
ainda há pouco não existiam, já não existem.
Os fins da infinitude rápido se juntavam.
As bruxas ruminavam maldições
ainda com todos os dentes da mocidade.
Sob os olhos do pai o filho se tornava homem.
Sob as órbitas do avô nascia o neto.
De todo modo, não contavam os anos.
Contavam as redes, os tachos, os ranchos, os machados.
O tempo, tão generoso para qualquer estrela do céu,
estendia-lhes a mão quase vazia
e a retirava rápido, como se tivesse pena.
Mais um passo, mais dois
ao longo de um rio brilhante,
que da treva emerge e na treva some.
Não havia nem um instante a perder,
perguntas a postergar e iluminações tardias
a não ser as que tivessem sido antes experimentadas.
A sabedoria não podia esperar os cabelos brancos.
Tinha que ver claro, antes que a claridade chegasse,
e ouvir toda voz, antes que ela se propagasse.
O bem e o mal -
dele sabiam pouco, porém tudo:
quando o mal triunfa, o bem se esconde;
quando o bem aparece, o mal fica de tocaia.
Nem um nem outro se pode vencer
nem colocar a uma distância sem volta.
Por isso se há alegria, é com um misto de aflição,
se há desespero, nunca é sem um fio de esperança.
A vida, mesmo se longa, será sempre curta.
Curta demais para se acrescentar algo.
(Victor Grinbaum é jornalista e escritor e mora no Rio de Janeiro)
Retrato de Mulher
Wislawa Szymborska
Deve ser para todos os gostos,
Mudar só para que nada mude.
É fácil, impossível, difícil, vale tentar.
Seus olhos são, se preciso, ora azuis, ora cinzentos,
negros, alegres, rasos d'água sem nenhuma razão.
Dorme com ele como a primeira que aparece, a única no mundo.
Dá-lhe quatro filhos, nenhum filho, um.
Ingênua, mas a que melhor aconselha.
Fraca, mas aguenta.
Não tem cabeça, pois vai tê-la.
Lê Jaspers e revistas de mulher.
Não entende de parafusos mas constrói uma ponte.
Jovem, como sempre jovem, ainda jovem.
Segura nas mãos um pardalzinho de asa partida
seu próprio dinheiro para uma viagem longa e longínqua
um cutelo para carne, uma compressa, um cálice de vodca.
Corre para onde, não está cansada.
Claro que não, só um pouco, muito, não importa.
Ou ela o ama ou é teimosa.
Para o bem, para o mal e para o que der e vier.
Homem
Pouca luz à pena, um desenho à escrivaninha. Em um naufrágio de orações, o homem canta sua herança, e diz: outrora em passaporte, em cicatriz rabisco meus passos hoje, que ainda revoltos, seja num verso ou em paralisia.
Sangue
Sangue
Fere o mundo aquilo que do coração esqueces, e diz: do mal não afastes os teus pés, e dos umbrais apagues tuas origens.
Silêncio
E deixou-se fotografar. Tênue e fugaz, como névoa do chá e do tabaco, e também dos corpos, que apagam-se em texto e restituem-se em memória, nesta condição de homem que atravessa mares e terras, e por vezes deixa-se por eles naufragar.

Lembro das sabatinas nos jornais de 2011 quando do anúncio da publicação de uma autora polonesa, conhecida no Brasil por seu Nobel em 1996, e por alguns poucos escritos de nossas universidades. Em edição da Companhia das Letras (hoje, em 4ª reimpressão), a coletânea de poemas de Wislawa Szymborska era ao mesmo tempo descoberta e velho debate: seria a poesia ainda um retrato de um mundo sujeito aos homens e à guerra? Muitas as questões e interlocuções da época, que por escolha não trazemos ao blog, mas que de algum modo rememoramos hoje, nesta conversa sobre a memória e nossa origem, e também sobre a herança que nos ombros carregamos, e por vezes esquecemos.
Nesta postagem então, alguns poemas da autora, e um texto do jornalista Victor Grinbaum, de biografia também polonesa, que compartilha hoje uma reflexão sobre a memória e o holocausto, e suas reminiscências.
Sinopse: Wislawa Szymborska viveu desde menina em Cracóvia, cidade situada às margens do Vístula, no sul da Polônia. O fato de ter permanecido a vida inteira no mesmo lugar diz muito sobre essa poeta conhecida por sua reserva e extrema timidez. Contudo, embora os fatos de sua vida tenham permanecido privados, quase secretos, seus poemas viajam pelo mundo. Não são tantos: sua obra inteira consiste em cerca de 250 poemas cuja função, como declarou a poeta no discurso de Oslo, é perguntar, buscar o sentido das coisas.
Com sua poesia indagadora, Szymborska foi chamada “poeta filosófica”, ou “poeta da consciência do ser”. No Brasil, teve poemas esparsos publicados em jornais e revistas ao longo dos anos, mas esta edição da Companhia das Letras, com seleção, introdução e tradução de Regina Przybycien, é a primeira oportunidade que tem o leitor brasileiro de lê-la em português. A coletânea de 44 poemas é uma belíssima apresentação à obra dessa importante poeta contemporânea.
Com sua poesia indagadora, Szymborska foi chamada “poeta filosófica”, ou “poeta da consciência do ser”. No Brasil, teve poemas esparsos publicados em jornais e revistas ao longo dos anos, mas esta edição da Companhia das Letras, com seleção, introdução e tradução de Regina Przybycien, é a primeira oportunidade que tem o leitor brasileiro de lê-la em português. A coletânea de 44 poemas é uma belíssima apresentação à obra dessa importante poeta contemporânea.
Poemas, de Wislawa Szymborska. Tradução de Regina Przybycien. SP: Companhia das Letras, 2011.

A curta vida de nossos antepassados
Wislawa Szymborska
Não eram muitos os que passavam dos trinta.
A velhice era privilégio das pedras e das árvores.
A infância durava tanto quanto a dos filhotes dos lobos.
Era preciso se apressar, dar conta da vida
antes que o sol se pusesse,
antes que a primeira neve caísse.
Meninas de treze anos gerando filhos,
meninos de quatro rastreando ninhos de pássaros na moita,
jovens de vinte servindo de guias nas caçadas -
ainda há pouco não existiam, já não existem.
Os fins da infinitude rápido se juntavam.
As bruxas ruminavam maldições
ainda com todos os dentes da mocidade.
Sob os olhos do pai o filho se tornava homem.
Sob as órbitas do avô nascia o neto.
De todo modo, não contavam os anos.
Contavam as redes, os tachos, os ranchos, os machados.
O tempo, tão generoso para qualquer estrela do céu,
estendia-lhes a mão quase vazia
e a retirava rápido, como se tivesse pena.
Mais um passo, mais dois
ao longo de um rio brilhante,
que da treva emerge e na treva some.
Não havia nem um instante a perder,
perguntas a postergar e iluminações tardias
a não ser as que tivessem sido antes experimentadas.
A sabedoria não podia esperar os cabelos brancos.
Tinha que ver claro, antes que a claridade chegasse,
e ouvir toda voz, antes que ela se propagasse.
O bem e o mal -
dele sabiam pouco, porém tudo:
quando o mal triunfa, o bem se esconde;
quando o bem aparece, o mal fica de tocaia.
Nem um nem outro se pode vencer
nem colocar a uma distância sem volta.
Por isso se há alegria, é com um misto de aflição,
se há desespero, nunca é sem um fio de esperança.
A vida, mesmo se longa, será sempre curta.
Curta demais para se acrescentar algo.
A Primeira Fotografia
Um texto de Victor Grinbaum
"Este é meu trisavô, Moshe Lewartovsky, na única fotografia que tirou em toda sua vida, na cidade de Łódź, Polônia, no ano de 1936.
O original deste retrato pertence ao meu tio. É um pequeno cartão, de uns 10 x 6 cm, em tom de sépia, muito danificado pelo tempo. Esta é uma ampliação posterior e retocada que está na sala da casa do meu pai. A foto original foi enviada para sua filha, minha bisavó Nechema (a quem cheguei a conhecer), às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Minha bisavó havia emigrado anos antes para o Brasil, já casada com meu bisavô Zelik, e havia lhe escrito uma carta onde expressava sua preocupação com o restante da família.
Moshe era um talmudista. Vivia para o estudo e enxergava o mundo à sua volta pelas lentes da religião. Para ele, Hashem estava zelando por Seu povo e nada de mais grave poderia lhes acontecer. Mas ele jamais escreveu tais palavras. Ao invés disso, ele apanhou um de seus grossos volumes do Talmude Babilônico e se dirigiu a um estúdio fotográfico qualquer. Naquele dia ele consentiu que se batesse a única foto de sua vida. Para judeus religiosos como ele, uma fotografia poderia acabar por se transformar em objeto de culto, contrariando o mandamento de não adorar nenhum ídolo. Mas naquele dia ele rompeu com suas crenças e se fez retratar com o volume do Talmude aberto e seu braço apoiado sobre suas páginas. Com a outra mão, ele apontou para a própria testa. E fitou as lentes da câmera.
A fotografia acabou por se tornar mais eloquente do que qualquer carta. E o recado do pai chegou à filha exilada nos trópicos: havia que se confiar em Deus acima de tudo. Mas ainda que Ele não o protegesse, sua memória sobreviveria nas mentes de seus descendentes salvos.
Três anos depois, a Polônia foi invadida pelas tropas de Hitler. Moshe Lewartovsky foi assassinado junto com sua esposa, filhos, netos, irmãos, sobrinhos e primos, logo nos primeiros dias de ocupação. Nunca se soube ao certo de que forma foram mortos e que destino tiveram seus corpos. Um único membro dos Lewartovsky, um sobrinho de Moshe, sobreviveu ao Holocausto e se estabeleceu na Bélgica após o fim da Guerra. Esteve uma única vez no Brasil, nos anos 60, para conhecer o outro pedaço sobrevivente da família. Hospedou-se em casa dos meus avós. Pouco tempo depois, minha tia, em lua de mel pela Europa, retribuiu a visita em Bruxelas. Por alguma razão desconhecida, ela acabou sendo mal recebida e desde então nunca mais houve contato entre os primos. Seus descendentes vivem hoje em Israel.
Hoje rendemos homenagens a cerca de seis milhões de homens, mulheres e crianças judeus que morreram como meu trisavô, entre os anos de 1939 e 1945. Que o seu sacrifício não tenha sido em vão."
O original deste retrato pertence ao meu tio. É um pequeno cartão, de uns 10 x 6 cm, em tom de sépia, muito danificado pelo tempo. Esta é uma ampliação posterior e retocada que está na sala da casa do meu pai. A foto original foi enviada para sua filha, minha bisavó Nechema (a quem cheguei a conhecer), às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Minha bisavó havia emigrado anos antes para o Brasil, já casada com meu bisavô Zelik, e havia lhe escrito uma carta onde expressava sua preocupação com o restante da família.
Moshe era um talmudista. Vivia para o estudo e enxergava o mundo à sua volta pelas lentes da religião. Para ele, Hashem estava zelando por Seu povo e nada de mais grave poderia lhes acontecer. Mas ele jamais escreveu tais palavras. Ao invés disso, ele apanhou um de seus grossos volumes do Talmude Babilônico e se dirigiu a um estúdio fotográfico qualquer. Naquele dia ele consentiu que se batesse a única foto de sua vida. Para judeus religiosos como ele, uma fotografia poderia acabar por se transformar em objeto de culto, contrariando o mandamento de não adorar nenhum ídolo. Mas naquele dia ele rompeu com suas crenças e se fez retratar com o volume do Talmude aberto e seu braço apoiado sobre suas páginas. Com a outra mão, ele apontou para a própria testa. E fitou as lentes da câmera.
A fotografia acabou por se tornar mais eloquente do que qualquer carta. E o recado do pai chegou à filha exilada nos trópicos: havia que se confiar em Deus acima de tudo. Mas ainda que Ele não o protegesse, sua memória sobreviveria nas mentes de seus descendentes salvos.
Três anos depois, a Polônia foi invadida pelas tropas de Hitler. Moshe Lewartovsky foi assassinado junto com sua esposa, filhos, netos, irmãos, sobrinhos e primos, logo nos primeiros dias de ocupação. Nunca se soube ao certo de que forma foram mortos e que destino tiveram seus corpos. Um único membro dos Lewartovsky, um sobrinho de Moshe, sobreviveu ao Holocausto e se estabeleceu na Bélgica após o fim da Guerra. Esteve uma única vez no Brasil, nos anos 60, para conhecer o outro pedaço sobrevivente da família. Hospedou-se em casa dos meus avós. Pouco tempo depois, minha tia, em lua de mel pela Europa, retribuiu a visita em Bruxelas. Por alguma razão desconhecida, ela acabou sendo mal recebida e desde então nunca mais houve contato entre os primos. Seus descendentes vivem hoje em Israel.
Hoje rendemos homenagens a cerca de seis milhões de homens, mulheres e crianças judeus que morreram como meu trisavô, entre os anos de 1939 e 1945. Que o seu sacrifício não tenha sido em vão."
(Victor Grinbaum é jornalista e escritor e mora no Rio de Janeiro)

Retrato de Mulher
Wislawa Szymborska
Deve ser para todos os gostos,
Mudar só para que nada mude.
É fácil, impossível, difícil, vale tentar.
Seus olhos são, se preciso, ora azuis, ora cinzentos,
negros, alegres, rasos d'água sem nenhuma razão.
Dorme com ele como a primeira que aparece, a única no mundo.
Dá-lhe quatro filhos, nenhum filho, um.
Ingênua, mas a que melhor aconselha.
Fraca, mas aguenta.
Não tem cabeça, pois vai tê-la.
Lê Jaspers e revistas de mulher.
Não entende de parafusos mas constrói uma ponte.
Jovem, como sempre jovem, ainda jovem.
Segura nas mãos um pardalzinho de asa partida
seu próprio dinheiro para uma viagem longa e longínqua
um cutelo para carne, uma compressa, um cálice de vodca.
Corre para onde, não está cansada.
Claro que não, só um pouco, muito, não importa.
Ou ela o ama ou é teimosa.
Para o bem, para o mal e para o que der e vier.
*Ou ela o ama ou é teimosa.
ResponderExcluirPara o bem, para o mal e para o que der e vier*
Incrível como podemos nos identificar com palavras escritas por alguém que vem de uma realidade tão distante da nossa, encontro que só a literatura proporciona na maioria das vezes. Belo texto amiga, por essas e outras que te indiquei em uma premiação da blogosfera, passa lá no blog para saber mais ;)
Beijoooo <3