"Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse vendendo minha alma. Falei nisso com um amigo que me respondeu: mas escrever é um pouco vender a alma. É verdade. Mesmo quando não é por dinheiro, a gente se expõe muito. Embora uma amiga médica tenha discordado: argumentou que na sua profissão dá sua alma toda, e no entanto cobra dinheiro porque precisa viver. Vendo, pois, para vocês como o maior prazer uma certa parte da minha alma - a parte de conversa de sábado."
Escrever aos que descansam à beira da página e do sábado: entre os anos 1967 e 1973, Clarice atuou como cronista no Jornal do Brasil, onde semanalmente compartilhou textos claros como os de um diário, porém obscuros aos que esperavam de Clarice um gênero literário, e não um engenho de si mesma.
Por descobrir-se poeta, desnudar o coração era entregar-se ao mundo, e, ao mesmo tempo, vivê-lo: "Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem de ser vivido até a última gota..." (em "Mas há a vida", p. 57). Nestas crônicas de sábado, Clarice dedicou seus versos à audácia dos primeiros encontros, assim como aos enganos de toda pequena juventude: "Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. (...) Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência. (...) Sofri muito..." (em: "A descoberta do mundo", p. 29). Com as dores de cada descoberta, resta-nos, tal como Lispector, atravessar o amor e recomeçar o caminho. Ou nele insistir.
O amor que a todos fere é comum ao texto de Clarice. E também o ciúme, este disfarce para o coração inconformado com a vida que não se conquistou plenamente. Em "Por causa de um bule rachado" e "Sem aviso", a desigualdade do sentimento torna-se o estopim de uma "comunicação muda" (este, também nome de crônica), onde o par predispõe-se ao desencanto, e, sem ventura alguma, às portas fechadas, ao assombro da partida: "O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão". (p. 53)
O fim de um amor pode ser o início de uma amizade, ou o seu indício. Em certas crônicas, Clarice revive alguns seus amores: Leopoldo, San Tiago, Sergio Porto e Lucio Cardoso, este último, por quem nutriu legítima admiração e pesares infinitos:
Todo sentimento, porém, pode tornar-se uma espécie de amigo: "Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença". Penso neste abrir de crônicas em um sábado antigo: como fugir ao que ainda nos consome e enfrentar outras verdades? E como encontrar uma verdade que doa menos e, continuamente, escrevê-la com a intensidade de um rito? Nesta reunião de textos, Clarice demonstra todo um encanto pelo cotidiano e seus episódios (um homem e seu cachorro; um olhar, um carro novo e um galanteio; uma viagem de táxi ou um jantar; as inimizades e uma carta esquecida...), que, de tão triviais, em pouco se distanciam do sentimento amoroso: ao grudarem no olhar e na pele, os guardamos em nossa história, assim como em nosso texto, como se deles aguardássemos o próximo enredo de nossas vidas, e quem sabe esse tal amor, de novo e de novo...
"Tive um dia desses um almoço alegre e melancólico. Tratava-se do reencontro de três ex-colegas da Faculdade Nacional de Direito. (...) Reencontro alegre porque gostávamos umas das outras, porque a comida estava boa e tínhamos fome. (...) E melancólico porque nenhuma de nós terminara sendo advogada. Advogada, meu Deus. (...) Voltando ao grupo: nós nos despedimos alegres ou tristes? Não sei. Em mim havia um certo estoicismo, em relação a ter tido uma parte do meu passado tão inútil. Ora, mas quantas outras coisas inúteis eu já havia vivido. Uma vida é curta: mas, se cortarmos os seus pedaços mortos, curtíssima ela fica. (...)
Tomei um táxi que me deixaria em casa, e refleti sem amargura: muita coisa inútil na vida da gente serve como esse táxi: para nos transportar de um ponto útil a outro. E eu nem quis conversar com o chofer." (p.129).
Por descobrir-se poeta, desnudar o coração era entregar-se ao mundo, e, ao mesmo tempo, vivê-lo: "Mas há a vida que é para ser intensamente vivida, há o amor. Há o amor. Que tem de ser vivido até a última gota..." (em "Mas há a vida", p. 57). Nestas crônicas de sábado, Clarice dedicou seus versos à audácia dos primeiros encontros, assim como aos enganos de toda pequena juventude: "Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. (...) Enquanto isso, sem saber da realidade, continuava por puro instinto a flertar com os meninos que me agradavam, a pensar neles. Meu instinto precedera a minha inteligência. (...) Sofri muito..." (em: "A descoberta do mundo", p. 29). Com as dores de cada descoberta, resta-nos, tal como Lispector, atravessar o amor e recomeçar o caminho. Ou nele insistir.
O amor que a todos fere é comum ao texto de Clarice. E também o ciúme, este disfarce para o coração inconformado com a vida que não se conquistou plenamente. Em "Por causa de um bule rachado" e "Sem aviso", a desigualdade do sentimento torna-se o estopim de uma "comunicação muda" (este, também nome de crônica), onde o par predispõe-se ao desencanto, e, sem ventura alguma, às portas fechadas, ao assombro da partida: "O que nos salva da solidão é a solidão de cada um dos outros. Às vezes, o que elas comunicam silenciosamente uma à outra é o sentimento de solidão". (p. 53)
O fim de um amor pode ser o início de uma amizade, ou o seu indício. Em certas crônicas, Clarice revive alguns seus amores: Leopoldo, San Tiago, Sergio Porto e Lucio Cardoso, este último, por quem nutriu legítima admiração e pesares infinitos:
"Enquanto
escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de
música antiga que Lúcio me deu de presente. (...) Tanto ouvi que a mola
partiu. A caixinha de música está morta? Não. Assim como Lúcio não está
morto dentro de mim." (p.92)
Tanto
ouvimos que a música não terminou. Arrepia o ouvido. Como estrofe sem par ou um par sem horizonte, suspenso e frio, tão frio como a duração de um amor que não disse adeus. Neste ponto da história, Clarice enfrenta a solidão do nada, assim como o peso do infinito: "Não,
não quero mais gostar de ninguém porque dói. Não suporto mais nenhuma
morte de ninguém que me é caro. Meu mundo é feito de pessoas que são as
minhas - e eu não posso perdê-las sem me perder." (em "As dores da sobrevivência: Sérgio Porto", p. 93). Romper o fio do mundo é um
malabarismo próprio ao fim do amor, mesmo. Em dias assim, só nos resta o espanto de uma nova rima, ou os encantos de um passado e seu precipício.
Todo sentimento, porém, pode tornar-se uma espécie de amigo: "Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença". Penso neste abrir de crônicas em um sábado antigo: como fugir ao que ainda nos consome e enfrentar outras verdades? E como encontrar uma verdade que doa menos e, continuamente, escrevê-la com a intensidade de um rito? Nesta reunião de textos, Clarice demonstra todo um encanto pelo cotidiano e seus episódios (um homem e seu cachorro; um olhar, um carro novo e um galanteio; uma viagem de táxi ou um jantar; as inimizades e uma carta esquecida...), que, de tão triviais, em pouco se distanciam do sentimento amoroso: ao grudarem no olhar e na pele, os guardamos em nossa história, assim como em nosso texto, como se deles aguardássemos o próximo enredo de nossas vidas, e quem sabe esse tal amor, de novo e de novo...
"Tive um dia desses um almoço alegre e melancólico. Tratava-se do reencontro de três ex-colegas da Faculdade Nacional de Direito. (...) Reencontro alegre porque gostávamos umas das outras, porque a comida estava boa e tínhamos fome. (...) E melancólico porque nenhuma de nós terminara sendo advogada. Advogada, meu Deus. (...) Voltando ao grupo: nós nos despedimos alegres ou tristes? Não sei. Em mim havia um certo estoicismo, em relação a ter tido uma parte do meu passado tão inútil. Ora, mas quantas outras coisas inúteis eu já havia vivido. Uma vida é curta: mas, se cortarmos os seus pedaços mortos, curtíssima ela fica. (...)
Tomei um táxi que me deixaria em casa, e refleti sem amargura: muita coisa inútil na vida da gente serve como esse táxi: para nos transportar de um ponto útil a outro. E eu nem quis conversar com o chofer." (p.129).
"Até que começou a madrugar, a quase amanhecer devagar. (...) E San Tiago descobriu nas esquinas de Paris as primeiras vendedoras de flores. Não posso dizer quantas rosas ele comprou para mim. Sei que eu andava pelas ruas sem poder carregar tantas, e à medida que eu andava as rosas caíam pelo chão. Se jamais fui bonita foi naquele amanhecer de paris, com as rosas caindo de meus braços plenos. E um homem que enfeita uma mulher não tem lucidez fria." (p.96)
Clarice lispector | Org. Pedro Vasquez
Ed. Rocco Jovens Leitores, 2010
Sinopse: Amor
e amizade inspiraram Clarice Lispector dezenas de vezes. Prova disso
são as quatro dezenas de textos selecionadas pelo editor Pedro Karp
Vasquez para a coletânea De amor e amizade – crônicas para jovens,
primeiro de uma coleção que reunirá crônicas, escolhidas por temas, de
Clarice Lispector.
Sem prender-se a significados
prosaicos, a escritora criou durante anos histórias que remetem a
amizades daquelas sem tamanho, a amores para o resto da vida, a
relacionamentos baseados na superficialidade e até mesmo ao episódio
daquele amor destruído por causa de um bule de bico rachado. Passadas
mais de três décadas da morte de Clarice Lispector, os textos confirmam
que esses sentimentos permeiam relações e gerações.
Os
textos escolhidos apresentam-se impregnados pela forma incomum com que a
escritora transporta para o papel seu jeito de ver o mundo e de lidar
com o amor e a amizade. Linha após linha, Clarice conduz seus leitores
pela “mistura de observações das miudezas do cotidiano com vastos voos
do espírito”, como define o editor no prefácio. Leitores de Clarice
Lispector não tem idade, mas desta vez a seleção foi pensada para
provocar uma experiência inspiradora em jovens leitores, aqueles que
“estão começando a descobrir os mistérios e os prazeres do amor e da
amizade”.
Histórias fictícias intercalam-se com relatos
pessoais, nos quais Clarice parece prestar uma homenagem a amigos
queridos. Aparecem nesses momentos, companheiros de episódios de alguma
fase da vida da autora, como é o caso do matemático Leopoldo Nachbin.
Clarice e Leopoldo encontraram-se no primeiro dia de aula do Grupo
Escolar João Barbalho, em Recife. Durante alguns anos, os dois foram os
mais impossíveis da turma, com boas notas em todas as disciplinas,
exceto em comportamento.
Clarice escreve ainda sobre
outro tipo de amor/amizade, aquele com toques genuínos de admiração,
algo próximo ao sentimento que levou a leitora anônima a fazer um suéter
especialmente para a escritora. A resposta, em tom de agradecimento,
foi escrita com a delicadeza que Clarice costumava dedicar aos leitores –
a quem chegava a responder cartas e a escrever crônicas baseadas em
suas sugestões e seus questionamentos: “E eis-me dona de repente do
suéter mais bonito que os homens da terra já criaram.”
De
amor e de amizade – crônicas para jovens não se restringe, porém,
somente àqueles que encontram-se com Clarice pela primeira vez, mas
serve também como um “sopro de renovação e reflexão para os leitores
mais maduros”, aqueles que há muito já descobriram que a vida não foi
feita para ser vivida automaticamente e que tanto a amizade quanto o
amor devem ser experimentados até a última gota – “sem nenhum medo”,
como ressalta em determinado momento a escritora.
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