A poesia é um lugar-comum para o amor, e também seu maior estandarte. Neste território de escrita, o amor é como um precipício; seus versos, um olhar sem esquinas, assim raso e escuro, como um amante sujeito ao verso quebrado, ao tropeço da pena. À ruptura de seu próprio destino, o poeta é também um Kintsukuroi perfeito.
Às margens de um soneto, estrofes de coragem e confissão e pouco senso: é assim que o amor nos conduz e paralisa. Sobre o estado-de-amar, pode-se dizer que intransitivo, porém de longe um verso simples. Afinal, o que pulsa é um amor emaranhado, é um nó de letras, um longo capítulo ou um Infinito, como um poema de Vinicius, cujo primeiro salto, O caminho para a distância, foi assim descrito:
Este livro é o meu primeiro livro. Desnecessário dizer aqui o que ele significa para mim como coisa minha — creio mesmo que um prefácio não o comportaria normalmente.
São cerca de quarenta poemas intimamente ligados num só movimento, vivendo e pulsando juntos, isolando-se no ritmo e prolongando-se na continuidade, sem que nada possa contar em separado. Há um todo comum indivisível.
Seus defeitos de ideia são os meus defeitos de formação. Seus defeitos de construção são os meus defeitos de realizador. Eu o dou tal como o fiz, com todos os arranhões que lhe notei na fixação inicial, virgem de remodelações, na mesma seiva em que sempre viveu.
Ofereço-o aos meus amigos.
V.M. Rio, 1933
Por ruas e bossas, gerações e esquinas, assim foi sua trajetória. No salto de um poeta, o amor de Vinicius irrompe em palavras, esgueira-se em partituras, em partidas e páginas, e no voo de toda uma vida.
Há poucos dias, um novo olhar editorial replicou esta poesia: em uma belíssima edição da Companhia das Letras, sonetos retornam aos seus abismos, e também às suas cantigas — como se à beira de um disparo, como se às voltas de um escape ao tiro; porque o amor é assim.
Ilustrada pelo artista plástico carioca Filipe Jardim, esta antologia reúne 22 poemas de um dos fundadores da bossa nova. Desde seu livro de estreia, O caminho para a distância, lançado em 1933, passando por Forma e exegese (1935) e Livro de sonetos (1957), até chegar a Novos poemas II (1959), o encantamento amoroso é o tema que perpassa toda a obra de um dos nossos principais poetas líricos.
Se no poema “A mulher que passa” Vinicius pergunta: “Por que me faltas, se te procuro?”, nos versos iniciais de “Soneto do Corifeu” ele define o estado de urgência em que vivia, numa assombrosa constatação: “São demais os perigos desta vida/ Para quem tem paixão, principalmente”.
Namorados no mirante
Rio de Janeiro
Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
Remontavam às origens - a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie - tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas no magma incandescente
Que milênios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.
Eles eram mais antigos que o silêncio...
Soneto de inspiração
Não te amo como uma criança, nem
Como um homem e nem como um mendigo
Amo-te como se ama todo o bem
Que o grande mal da vida traz consigo.
Não é nem pela calma que me vem
De amar, nem pela glória do perigo
Que me vem de te amar, que te amo; digo
Antes que por te amar não sou ninguém.
Amo-te pelo que és, pequena e doce
Pela infinita inércia que me trouxe
A culpa é de te amar — soubesse eu ver
Através da tua carne defendida
Que sou triste demais para esta vida
E que és pura demais para sofrer.
Não te amo como uma criança, nem
Como um homem e nem como um mendigo
Amo-te como se ama todo o bem
Que o grande mal da vida traz consigo.
Não é nem pela calma que me vem
De amar, nem pela glória do perigo
Que me vem de te amar, que te amo; digo
Antes que por te amar não sou ninguém.
Amo-te pelo que és, pequena e doce
Pela infinita inércia que me trouxe
A culpa é de te amar — soubesse eu ver
Através da tua carne defendida
Que sou triste demais para esta vida
E que és pura demais para sofrer.
Sobre o poeta: Nasceu em 1913, no Rio de Janeiro. Cursou a Faculdade de Direito da rua do Catete e a Universidade de Oxford, onde estudou língua e literatura inglesas. Em 1941 entrou para o Itamaraty, assumindo em 1946 seu primeiro posto diplomático, de vice-cônsul em Los Angeles. Poeta, cronista e dramaturgo, em 1953 conheceu Antonio Carlos Jobim e iniciou um apaixonado envolvimento com a música brasileira, tornando-se um de seus maiores letristas. A lista de seus parceiros musicais é vasta, incluindo, além de Tom Jobim, Baden Powell, Chico Buarque, Carlos Lyra, Edu Lobo e Toquinho, entre outros. Morreu em 1980.
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