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maio 14, 2017

Desintegrados - Neal Shusterman | Editora Novo Conceito | Texto de Jonatas T. B.


Desintegrando a moral

“Connor ri, pois ninguém jamais fez essa pergunta de forma tão direta. Chega a ser um alívio falar sobre isso. 
- Tinha um cara... um sujeito bem durão. Ele tentou me matar uma vez, mas não conseguiu ir até o fim. De todo jeito, ele foi o último a ser fragmentado no Happy Jack. Eu deveria ser o próximo, mas foi aí que os batedores explodiram o Ferro-Velho. Perdi um braço e acordei com este. Pode acreditar, não foi escolha própria.
Starkey absorve a história e assente, sem julgar.
- Medalha de honra, cara – diz ele. – Exiba com orgulho.”

Nesta última semana, tive a oportunidade de ler Desintegrados, uma ficção científica distópica escrita por Neal Shusterman e publicado pela Editora Novo Conceito, seqüência do best-seller Fragmentados. A história se passa em um futuro próximo, após o final de uma guerra civil americana provocada por conflitos entre pró-vida e pró-abortos. Ambos os lados finalmente entram em um curioso consenso: nenhuma vida seria tirada desde a concepção até a idade de treze anos. Passado o período, haveria a possibilidade de submeter às crianças a um processo clínico bizarro denominado fragmentação (é exatamente isso que você está pensando: separar as partes do corpo e matê-lo ainda vivo).

A lei da fragmentação contém inúmeras condições, mas, basicamente, garante os pais se livrarem dos filhos sem o peso da responsabilidade parental, seja deixando a criança indesejada na porta de outra pessoa (caso denominado “cegonha”), o que tornaria a outra o novo responsável, ou, no caso de adolescentes problemáticos, cujos pais teriam a oportunidade de deixar o filho sob tutela de instituições promotoras de venda de órgãos. No segundo caso, o adolescente não é morto no processo. O fragmentado é mantido vivo nos Campos de Colheita quanto tempo necessário. Segundo a “lógica” da lei, se ele ainda estivesse vivo nos outros corpos, logo, as pessoas favoráveis à vida não teriam do que se queixar. Porém, existe um grupo insurgente denominado denomina RAD (Resistência Antidivisional). A ordem de teor revolucionário acolhe fragmentários desertores para mantê-los a salvo até seus dezoito anos.

A narrativa começa com a fuga de Starkey, um jovem problemático que se alista no grupo de resistência. Sua personalidade impulsiva e capacidade natural de liderança o fazem entrar em conflito com Connor, herói fugitivo de um dos campos de colheita considerado morto, e um dos protagonistas do primeiro livro da série. Enquanto Connor quer confrontar o sistema de fragmentação através de estratégias, Starkey defende uma abordagem agressiva pelo terrorismo. 

Outra personagem que considerei bem interessante da série foi Miracolina. Adolescente preparada desde nascença para ser tributada como dízimo por seus pais, devido a motivos religiosos. Todavia, para mim, Cam é a personagem mais intrigante. É a primeira criatura composta por vários pedaços vivos de seres humanos, incluindo o cérebro, formando assim uma espécie de monstro do livro “Frankenstein”. 

“A escola é enorme, então, mesmo que dízimos não sejam comuns na vizinhança, há outros quatro, todos vestidos de branco como ela. Antes, havia seis, mas os dois mais velhos já se foram. Os dízimos restantes são seus amigos verdadeiros. São aqueles a quem ela sente a necessidade de dizer adeus.”

“- Não – diz Risa. – Não te acho medonho. É só que não consigo te entender. É como olhar para Picasso e tentar decidir se a mulher na pintura é feia ou bonita. Você não sabe, mas não consegue parar de olhar.
Cam sorri.
- Você me vê como arte. Gosto disso.”

Entre os problemas éticos abordados em meio a uma narrativa dinâmica, a história possui variados focos, incluindo personagens não tão importantes para o enredo como pais ou um simples guarda do portão, técnica que Shusterman utiliza muito bem em momentos de suspense. Apesar de eu não ter lido o primeiro livro da série, neste encontrei todas as informações necessárias sem que me perdesse no enredo, e ainda me senti motivado ler os outros. Um elemento que achei bastante criativo são os anúncios do programa de fragmentação ao longo do texto. São fragmentos destacados, sem ligação direta com a narrativa, que reforçam a ambientação, dando a impressão de ironia bastante ácida. 

“Quando perdi meu emprego, as contas e as dividas começaram a se acumular e eu não sabia o que fazer. Não achei que houvesse um jeito de sustentar minha família. Cheguei a pensar em ir até uma unidade de colheita no exterior e me dividir no mercado negro para pagar as despesas da minha família, mas o mercado negro me assustava. Bom, pelo menos há uma proposta em votação para legalizar a fragmentação voluntária de adultos – algo que daria à minha família dinheiro o suficiente para sobreviver. Imagina só! Eu poderia entrar no estado dividido com paz de espírito, sabendo que minha família ficaria confortável – e, ao legalizar isso, seria o fim da linha para os fragmentadores do mercado negro. Vote sim na Proposta 58! Ajude as famílias como a minha e dê um fim à pirataria de órgãos!”

Por fim, Desintegrados me fez pensar bastante nas considerações modernas a respeito da vida. Mediante ao laborioso esforço que foi deixarmos de ser meras bestas, refletir no quanto nossa realidade tem de semelhanças com essa ficção é algo que pode ser aterrador para o leitor mais consciente dos fundamentos originais do direito natural à vida. Assim como no romance de Shusterman, é evidente que no nosso mundo existam grupos políticos que não medem esforços para, através de propagandas e influência de entretenimento artístico, relativizar a vida e reduzi-la ao preço de uma peça vendida no supermercado. Apesar de ser uma ficção, é capaz de chamar a atenção para algo tão sério. A chave de entendimento talvez seja justamente o absurdo, também observado em obras como 1984 e Admirável Mundo Novo. Aconselho veementemente a leitura.




Desintegrados - Neal Shusterman

A Fragmentação tornou-se um grande negócio com poderosos interesses políticos e corporativos em jogo. O governo não quer apenas continuar com ela, como também expandi-la.

Cam foi feito inteiramente com as melhores partes de fragmentados e, tecnicamente, ele é um garoto que não existe. Um verdadeiro
Frankstein do futuro, que luta para encontrar sua identidade e se questiona se um ser como ele pode ter alma.

Quando as ações de um sádico caçador de recompensas ameaçam a causa de Connor, Lev e Risa, o destino de um deles é ligado ao de Cam.

A aguardada sequência de Fragmentados desafia a suposição de onde começa e termina a vida e o que realmente significa viver.

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