Alegria define o momento em que os amigos publicam um novo livro, ainda mais quando a publicação é dedicada a Poesia :)
Escarificação: ensimesma é um dos trabalhos recentes de Cesar Kiraly, autor cuja obra percorre o campo da Estética e da Teoria Política, da qual é professor, assim como o da produção poética, que neste ano também se apresenta em uma segunda casa, a Editora Patuá, que há pouco mais de um mês publicou Fuga sobre o branco [], livro que, em suas páginas, guarda um de meus poemas favoritos:
Ressentimento
sabe, papel da manhã?
todos esses sons que nos
envolvem. a vida acordando.
barulhos de acorda.
uma corda tesa.
os barulhos em volta do
pescoço. os barulhos da manhã.
o choro doce de uma mulher
no banheiro. passarinhos.
canhões. sabe de uma coisa
papel da manhã? res-
sinto-me. bem-te-vi é
tão fácil. não cabe
num poema novo.
Sobre o Escarificação, além de contar com um belíssimo projeto gráfico da Editora Substânsia, há um detalhe que preciso compartilhar com vocês, e que faz parte deste combo-alegria aqui do post: há muitos anos, em uma outra juventude, eu escrevia a partir de gravuras, feitas de imagens e tinta, e não apenas em parágrafos de um blog, como hoje. Neste meio tempo, que certamente bem menor que o do início da escrita-em-versos do Cesar, tais imagens foram motivo de inúmeras conversas, e de alguns muitos projetos a partir daí.
Pois bem, foi há alguns meses então que Cesar me pediu algumas destas gravuras antigas para ilustrar capa e contracapa de seu trabalho literário em Escarificação. Chegamos então a este encontro de imagens, feitas de reconstruções e monumentos (como a paisagem e a infância que nas rugas do tempo se desfaz e resplandece), e que viraram parte deste novo livro. Alegria define, mesmo :)
Alguns poemas:
112
o que diriam
se soubessem
o que sinto
daqueles que não sentiram
o frio do horror sentido?
113
não foi a navalha
que me deu que me abriu
os pulsos
comprei outra
não trairia nossos cortes
114
agradeço
adeus
pelas pálpebras
115
eu que tudo sofri
para te fazer sofrer
116
às mãos
sujas
deus me
salve
o verso
117
a vida é
isso que me mata
Sinopse: A
escarificação tem que ver com certo hábito negativo do movimento
corporal, causado por limitação física. Alguém acamado por muitos dias,
independente do quão bem tratado, desenvolve ferimentos na pele,
sobretudo nos vértices de apoio do corpo no leito.
Além
disso, há dinâmicas de ornamentação da pele sem o acréscimo de
artefatos ou pigmentos. Nelas, acontece a inscrição de diversos
ferimentos, de modo prolongado no tempo, até que as cicatrizes
consolidem a aparência final da marca. São imagens aparentadas às
tatuagens, mas destas diferem pela cor ser intrínseca aos processos de
cura do machucado.
Seria
possível dizer que a voluntariedade é o que diferencia essas duas
formas de escara. Todavia, ainda que impróprio, existe parentesco entre o
impigmentado de marcas e a autopunição. Ora, a autopunição não é ato de
liberdade.
Assim,
uma forma de ler esse livro é tomá-lo como operando na
complementaridade da escarificação como estado à mercê e a escarificação
como circunscrição do sofrimento. Se a escarificação é tomada
ensimesma, esta série de poemas é a escarificação : ensimesma. Ou mais,
uma investigação sistemática sobre o aparecimento de escaras.
Sobre o autor: Cesar Kiraly é professor de Estética e Teoria Política no Departamento de Ciência Política da UFF. Atua como curador da Galeria de Arte Ibeu no Rio de Janeiro. É Editor do Caderno-Revista de Poesia 7faces. Escreveu, dentre outros, os livros 'Variações: sobre um tema de Anselm Kiefer' e 'Fuga sobre o Branco [ ]'.
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