- Então, tenho que te contar uma ideia maluca que eu tive...
- Ideia pra um trabalho?
- É, eu tava indo pra casa, e um vento absurdo vindo de uma só direção, ainda bem que eu não tava de saia. Mas continuei andando, prendi o cabelo, daí as folhas começaram a "andar" mais rápido que eu, como se eu estivesse pisando em um tapete móvel, feito dos restos do último outono...
- Nossa, taí um bom título!
- Não é?! E depois aconteceu uma coisa ainda mais incrível, maior inspiração, peguei o celular na hora, fiz um vídeo, olha.
- Deixa ver... Pena que não deu tempo de filmar também o tapete-Aladyn de outon... Nossa! Isso aqui tá muito bom!
- Poisé! E foi algo que aconteceu no maior acaso...
- Foi algo que aconteceu porque você tava prestando atenção...
- Ah, mas olha esse vento, parecia que tudo tava respirando, a paisagem toda, não tinha como não prestar atenção!
- É, realmente não tinha, mas felizmente o motoboy prestou atenção em você né, porque olha isso, toda louca atravessando a rua e filmando, podia ter morrido, doida!
- Ahhh, tudo pela Arte, amiga! A gente tem que se arriscar, sair do lugar comum, confiar nas sugestões poéticas que o mundo nos oferece!
- Concordo com as sugestões poéticas, mas fica viva, tá? Que esse vídeo realmente tá muito bom! Quem diria, dona Julia recriando o Beleza Americana, vai reescrever o filme todo também?
- Nossa, tá todo mundo falando isso, mas acredita que não vi o Beleza ainda?
- Que isso, menina! Não conhece a cena do saco? É um clássico! Me dá aqui o celular, tem no Youtube. Pronto, assiste aí.
- Bora ver................... Gente!!! Como assim?!!
- Poisé!!!
- Uau, isso sim é arte!
- A tua percepção também, menina! Aliás, principalmente! Já que não conhecia o filme e saiu filmando no instinto.
- É, isso é verdade... Porque eu poderia ter filmado o Gael García da zona norte e ter curtido uma viagem mais documental né.
- Acho difícil. Você é poeta, tem nada de Easy Rider no sangue.
- Cause I am Easyyyy... Easy como a música do Faith no Moooooore...
- Easy como a música do Commodores, amiga.
- Quem?
- Êêê novinha, sabe nada dos flashbacks...
- Êêê idosa, pra mim o amor não tem essa de trilha não, pode ser flashback, pode ser pagode, pode ser...
- Eita, e quem falou de amor aqui antes, menina?
- E quem nunca falou de amor aqui antes, menina?...

Sempre ouviu que cada um é a soma de suas experiências. Mesmo que imperceptíveis, uma palavra, uma cena, uma situação, essas mínimas coisas são capazes de mudar uma pessoa. Para melhor ou pior. (Ainda não te disse nada, p.74)
Um horizonte chamado São Paulo. Ou Paris, Lisboa, um novo lugar. Porque pra sonhar é preciso dar um primeiro passo, e por vezes cruzar alguma geografia. Ainda em seus poucos vinte anos, Marina cruzaria seu primeiro oceano, partindo da pequena São
Pedro da Serra em direção a capital paulistana, onde o sonho de estudar, realizar-se
profissionalmente e quem sabe amar fosse talvez algo possível. E ainda que a passos poucos, o primeiro salário, a vida universitária e as melhores amigas seriam um conforto para quaisquer inquietações. Porque Marina muito desejava, era preciso ter os pés no chão para sentir cada mudança, cada encontro, cada presente que a vida lhe proporcionava.
Inquietação era também característica de Pedro, que desde muito jovem acreditou que a Arte poderia transformar corpos e consciências. Especialmente o seu, que por incompreensíveis razões foi se tornando um corpo cada vez mais frágil, ainda que permanentemente sensível a tudo o que o mundo julgava insignificante.² Em seus vinte e alguns anos, a visão turva de Pedro seria eternizada pelas lentes do Cinema e de todos os que a cada dia igualmente desafiam a opacidade do mundo.
No improvisado cineclube do bairro, quatro ou cinco espectadores parecem silenciosamente gostar - e de algum modo compreender - os ideais e sonhos ali compartilhados. E como persistência é uma das forças vitais de todo artista, Pedro e sua equipe (um trio formado por seu melhor amigo, uma amiga de trabalho e um futuro amor) seguem na contramão da adversidade rumo a um novo e audacioso projeto cinematográfico, possível até mesmo em um mundo desbotado, prestes a esmaecer.
A busca por inspiração também ocupa os dias de Marina, que em meio a uma rotina de trabalho em uma agência dos Correios dedica-se a minuciosos desenhos de moda, traçados com a intensidade de seus sonhos. Neste vaivém de realidade versus desejo, a história de Marina é como um presente-contínuo onde a interrupção é apenas um intervalo para a continuação de seu traço, pois o cotidiano nunca deixa de se escrever. Mesmo com os inúmeros desvios do caminho.
Ainda não te disse nada é um livro fronteiriço. Assim como Surpreendente!, cujos personagens encontram-se à beira do quase, este limite à primeira vista intransponível, e que ao menor sinal de audácia torna-se um impasse - ou um passo - para uma nova história. Na vida de Pedro e Marina, assim como em nossa própria vida, é preciso saber lidar com este quase que antecede o acontecimento. Para melhor ou pior.
Sempre às margens então, os personagem de Maurício Gomyde de alguma forma motivam-nos a não entregar o jogo. Porque é preciso apostar no que precisa ser feito, ainda que haja dor e inconveniência. Como no dia em que uma carta reescreveria os sonhos de Marina e um eu-te-amo salvaria Pedro de seu próprio abismo. E não há como não nos identificarmos com tais histórias, pois o impasse é o que nos move de um nível ao outro e nos torna ainda mais profundos.
Inquietação era também característica de Pedro, que desde muito jovem acreditou que a Arte poderia transformar corpos e consciências. Especialmente o seu, que por incompreensíveis razões foi se tornando um corpo cada vez mais frágil, ainda que permanentemente sensível a tudo o que o mundo julgava insignificante.² Em seus vinte e alguns anos, a visão turva de Pedro seria eternizada pelas lentes do Cinema e de todos os que a cada dia igualmente desafiam a opacidade do mundo.
No improvisado cineclube do bairro, quatro ou cinco espectadores parecem silenciosamente gostar - e de algum modo compreender - os ideais e sonhos ali compartilhados. E como persistência é uma das forças vitais de todo artista, Pedro e sua equipe (um trio formado por seu melhor amigo, uma amiga de trabalho e um futuro amor) seguem na contramão da adversidade rumo a um novo e audacioso projeto cinematográfico, possível até mesmo em um mundo desbotado, prestes a esmaecer.
A busca por inspiração também ocupa os dias de Marina, que em meio a uma rotina de trabalho em uma agência dos Correios dedica-se a minuciosos desenhos de moda, traçados com a intensidade de seus sonhos. Neste vaivém de realidade versus desejo, a história de Marina é como um presente-contínuo onde a interrupção é apenas um intervalo para a continuação de seu traço, pois o cotidiano nunca deixa de se escrever. Mesmo com os inúmeros desvios do caminho.
Ainda não te disse nada é um livro fronteiriço. Assim como Surpreendente!, cujos personagens encontram-se à beira do quase, este limite à primeira vista intransponível, e que ao menor sinal de audácia torna-se um impasse - ou um passo - para uma nova história. Na vida de Pedro e Marina, assim como em nossa própria vida, é preciso saber lidar com este quase que antecede o acontecimento. Para melhor ou pior.
Sempre às margens então, os personagem de Maurício Gomyde de alguma forma motivam-nos a não entregar o jogo. Porque é preciso apostar no que precisa ser feito, ainda que haja dor e inconveniência. Como no dia em que uma carta reescreveria os sonhos de Marina e um eu-te-amo salvaria Pedro de seu próprio abismo. E não há como não nos identificarmos com tais histórias, pois o impasse é o que nos move de um nível ao outro e nos torna ainda mais profundos.

- Muitas vezes reparei - continuou a Maria dos Remédios -, és capaz de conversar longamente com uma pessoa sem olhar para ela. Eu preciso de lhe ver os olhos, de saber como reage... Para ti só as palavras unem as pessoas, só elas permitem a comunicação. Já tinhas pensado?
Escrever é usar as palavras e não os olhos - saberás tu que eu escrevo? E ao mesmo tempo pus-me a observar-lhe os cabelos: são teus esses cabelos, foste tu a escolher este penteado?
Ela continuava:
- Aprende a olhar, pois as palavras são cegas, são surdas, não têm sabor, nem tacto...
(...)
Respondi-lhe:
- (...) Se olho uma paisagem ou um quadro, se não acompanho esse olhar com alguns comentários, embora silenciosos, os sentidos serão cegos... Não: as palavras é que dão olhos aos sentidos.³
Uma
boa escrita é a que nos deixa vulneráveis, imersos na intensidade do personagem e do livro. Acredito que para o autor a escrita seja também uma experiência frágil, como a de um escultor que pode a qualquer momento calejar sua criação. Como se num encontro de palavras tortas e corações alinhados, o ofício do escritor é doar este tanto de (sua) vida em cada letra ou entrelinha, assim como o do leitor é o de recontar (e reencontrar-se em) toda esta criação. Daí a ideia de que toda escrita pode ser boa, bastando a esta encontrar seus bons leitores. Certamente não me refiro ao conceito de bom para o mercado literário; disso não comentaremos aqui.
A gente escreve para permanecer. Ainda que com toda informalidade, o autor escreve para que algum sentimento permaneça, não importa se em nós ou apenas aqui dentro. E quando não houver sentido, a escrita poderá ser como um papel embolado no fundo da memória, e o autor um grande armazém de experiências: "Quando a impressora cuspiu a capa de The dark side of the moon, ele parou. Talvez ela representasse seu destino e não fosse necessário imprimir mais nada. O desenho do prisma, na capa, foi posicionado de ponta-cabeça. E as cores entravam no triângulo transformando-se em um único feixe, com fundo preto, em direção à borda da capa. As cores que nunca veria. A luz que se apagaria em pouco tempo. Luz que atravessava as janelas e fazia brilhar o mosaico no chão, formado pelas coisas que ele não desejava esquecer. Imagem que talvez tornasse aquele o lugar mais lindo de todo o mundo naquela tarde." (Surpreendente!, p. 127)
Quanto aos personagens de Maurício, estes parecem contar histórias como se conosco as escrevessem. Em confissões ao pé do bar e do ouvido, Marina, Fran, Thaís, Pedro, Fit, Mayla e Cristal compartilham imagens do amor e suas expectativas, como se em um filme onde o desejo eternamente inacabado superasse todo e qualquer script. E não poderia haver melhor definição para a Carta e para o Cinema do que esta intensidade que vem do amor e seus clichês. Afinal, a vida tem também seu universo de dias simples, sem nós, onde tudo apenas segue, um dia por vez, uma batalha por dia, entrecortados por um mundo de realizações e desejos pelo caminho. Daí que após a leitura de Ainda não te disse nada e Surpreendente! você simplesmente acorda ao término das páginas e vê que o sonho permanece. Tal como as histórias que encontramos e os amores que escrevemos. E acredito que a imagem de um bom livro seja esta: a de se tornar um afeto forte como uma carta, sendo ainda algo tão frágil como um texto.
A gente escreve para permanecer. Ainda que com toda informalidade, o autor escreve para que algum sentimento permaneça, não importa se em nós ou apenas aqui dentro. E quando não houver sentido, a escrita poderá ser como um papel embolado no fundo da memória, e o autor um grande armazém de experiências: "Quando a impressora cuspiu a capa de The dark side of the moon, ele parou. Talvez ela representasse seu destino e não fosse necessário imprimir mais nada. O desenho do prisma, na capa, foi posicionado de ponta-cabeça. E as cores entravam no triângulo transformando-se em um único feixe, com fundo preto, em direção à borda da capa. As cores que nunca veria. A luz que se apagaria em pouco tempo. Luz que atravessava as janelas e fazia brilhar o mosaico no chão, formado pelas coisas que ele não desejava esquecer. Imagem que talvez tornasse aquele o lugar mais lindo de todo o mundo naquela tarde." (Surpreendente!, p. 127)
Quanto aos personagens de Maurício, estes parecem contar histórias como se conosco as escrevessem. Em confissões ao pé do bar e do ouvido, Marina, Fran, Thaís, Pedro, Fit, Mayla e Cristal compartilham imagens do amor e suas expectativas, como se em um filme onde o desejo eternamente inacabado superasse todo e qualquer script. E não poderia haver melhor definição para a Carta e para o Cinema do que esta intensidade que vem do amor e seus clichês. Afinal, a vida tem também seu universo de dias simples, sem nós, onde tudo apenas segue, um dia por vez, uma batalha por dia, entrecortados por um mundo de realizações e desejos pelo caminho. Daí que após a leitura de Ainda não te disse nada e Surpreendente! você simplesmente acorda ao término das páginas e vê que o sonho permanece. Tal como as histórias que encontramos e os amores que escrevemos. E acredito que a imagem de um bom livro seja esta: a de se tornar um afeto forte como uma carta, sendo ainda algo tão frágil como um texto.

Tu disseste que alguns sonhos não se concretizaram. Mas, pensa... Que graça teria, caso todos eles sempre se tornassem realidade? A beleza da vida está em sua imprevisibilidade. (...) Um sonho não se realizou? Sonha outro. (Ainda não te disse nada, p. 159)
Maurício Gomyde, Ainda não te disse nada. Brasília: Porto 71, 2011.
Conheça o Book Trailer e a Playlist do livro
Maurício Gomyde, Surpreendente!. RJ: Intrínseca, 2015.
Conheça o hotsite do livro
Notas:
¹ Trecho inicial de Galáxias, de Haroldo de Campos. SP: 34, 2011 (3ª ed)
² - Preciso que ela continue acreditando na minha teoria de que o
cinema, a música boa e a literatura são instrumentos da Santíssima
Trindade para salvar o ser humano da derrota como espécie.
- Se essa teoria não começar a colocar dinheiro no caixa do Cultural, quem não vai se salvar é você. (Surpreendente!, p. 13)
³ Augusto Abelaira, Bolor. Portugal: Livraria Bertrand, 1978 (4ª ed)
Para acompanhar o Ainda não te disse nada, uma leitura sugerida: Henry James, In the Cage / Na Gaiola (1919). Infelizmente não encontrei um pdf traduzido, compartilho então o original:
"During her first weeks she had often gasped at the sums people were willing to pay for the stuff they transmitted—the “much love”s, the “awful” regrets, the compliments and wonderments and vain vague gestures that cost the price of a new pair of boots. She had had a way then of glancing at the people’s faces, but she had early learnt that if you became a telegraphist you soon ceased to be astonished. Her eye for types amounted nevertheless to genius, and there were those she liked and those she hated, her feeling for the latter of which grew to a positive possession, an instinct of observation and detection. (...) There were those she would have liked to betray, to trip up, to bring down with words altered and fatal; and all through a personal hostility provoked by the lightest signs, by their accidents of tone and manner, by the particular kind of relation she always happened instantly to feel".
Oi flor
ResponderExcluirnunca li nada do Mauricio, mas tenho muita vontade de ler a máquina de contar histórias,
foi o livro dele que mais me despertou curiosidade
Mil beijocas
⋙ ♥ Blog Livros com café
participe do concurso que está rolando lá no blog
Olha só que texto lindo temos aqui!
ResponderExcluirAdorei o formato do texto, um paralelo entre as duas histórias. Uma leitura maravilhosa da escrita do Gomyde que, por diversas vezes, já disse o quanto sou apaixonado e o quanto amo "Ainda não te disse nada".
Como não li "Surpreendente!" ainda não posso comentar nada a respeito, mas admiro muito a Marina (ANTDN) e sua doçura, garra e força de vontade para realizar-se na vida.
Lê mais Maurício.
"A máquina de contar histórias" agora (rs.).
Bjux!
Diego, Blog Vida & Letras
www.blogvidaeletras.blogspot.com
Oi Pepi e Diego!
ResponderExcluirAhhh, quero muito ler o "A máquina"!! Será o próximo com certeza <3
Olha, se eu fosse fazer uma não-resenha aqui, apenas diria: "Ainda" e "Surpreendente!" foram duas de minhas leituras mais intensas do ano! <3
E fico super feliz de ver que os amigos também admiram os textos do Maurício! Com certeza "Surpreendente" será também uma leitura emocionante pra vocês! Quando rolar resenha, me avisem :)
Bjs,
Rebeca
Estou participando de um sorteio para o livro Surpreendente e estou ansiosa :)
ResponderExcluirwww.blogdahida.com
Na torcida, Hidaiana! :)) Esses dois são meus novos livros da vida!! Leia também quando puder <3
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