Gene e Claudia tentaram por algum tempo me ajudar com o Problema Esposa. Infelizmente, a abordagem deles se baseava no tradicional paradigma do namoro, que eu já havia abandonado baseando-me no fato de que as probabilidades de sucesso não justificavam o esforço e as experiências negativas. Tenho trinta e nove anos, sou alto, estou em forma e sou inteligente; (...) porém, existe alguma coisa em mim que repele as mulheres. Nunca achei fácil fazer amizades e, pelo visto, as mesmas deficiências que causaram este problema também afetaram minhas tentativas de relacionamento amoroso. (p. 9)
Rotina como estabilidade, e não apenas tédio. No caso do personagem Don Tillman, o metódico geneticista de O Projeto Rosie, a rotina regrada é sinônimo para estabilidade emocional, ainda que para seus poucos amigos seja algo pior que a monotonia.
A história inicia com um projeto de Don para encontrar possíveis candidatas ao matrimônio. Gene, seu melhor amigo, apostou na estratégia de um questionário, este "instrumento cientificamente válido, com propósito definido" e que eventualmente poderia ser o melhor - senão o único - caminho para que Don encontrasse uma parceira para acompanhá-lo nesta quase segunda metade de sua vida.
Nomeado Projeto Esposa, o questionário é um método de aproximação social com vistas a obter informações sobre o comportamento e gostos de quem concordasse em respondê-lo, no caso, mulheres que também objetivassem encontrar um parceiro pra vida. E por ser Don o autor de tal instrumento, certamente encontraremos perguntas das mais triviais (como "Você fuma?") às mais absurdas ("Você comeria um rim?"), desde já expressando sua excentricidade e lógica para os relacionamentos humanos.
No entanto, na vida como nas ficções sobre a vida real, o coração
descobre sua voz na maior das interferências, e com Don não seria
diferente.
Importante: Por ser este um livro de algum modo polêmico para algumas pessoas (por conta da objetificação do amor), gostaria de nesse texto compartilhar uma leitura "tangencial" à história, como em O Lado Feio do Amor, onde preferi não abordar as infinitas descrições de cenas amorosas e sexuais de Tate e Miles, ainda que estas ocupem praticamente uns 70% do livro. Acredito que a ideia de um Bom Livro seja justamente essa, a de também despertar no leitor possibilidades de interpretação paralelas ao que encontramos em suas páginas. Deste modo acordados, continuaremos então em nossa prosa sobre o tal Projeto Rosie.

Nem sempre lidamos bem com mudanças, especialmente quando estas dizem respeito ao que nos deixa seguros, como uma profissão ou trabalho não necessariamente perfeitos mas que ofertam alguma comodidade e sobrevivência; ou ainda alguma vida em um mesmo bairro, escola ou círculo de amigos, onde a previsibilidade torna-se um tédio que só admitimos pelo medo de colocarmos tudo a perder ao primeiro passo de mudança. E assim vivemos, como se a rotina das relações, lugares e eventos pesassem menos quando em uma balança onde a segurança é o contrapeso.
Dizem que o segredo para um bom relacionamento é ceder. E por ser este conselho praticamente uma frase feita e um clichê, nem sempre entendemos ou queremos entender a dimensão de sua proposta. Afinal, não importa se em uma relação do tipo par-amoroso ou em contextos de proximidade social: diminuir o nosso espaço para que o outro dele compartilhe é tarefa nada fácil, e envolve todo um medo de 'perder a nós mesmos' neste encontro com a vontade e o desejo do outro, não importando se este outro é um amigo, um vizinho ou alguém com quem compartilhamos uma casa, uma cama ou uma vida.
Mas de volta à história. De todos os livros que conheci neste ano consigo aproximar O Projeto Rosie apenas ao Nós, já que ambos compartilham histórias de relacionamentos mal sucedidos sob a ótica de um mesmo rabugento e cético narrador. Mas não gostaria de encerrar este dado inflexível da personalidade apenas aos personagens "com alguma idade" (claro que a eles isto se aplica com uma maior intensidade, mas não só); que atire o primeiro livro triste quem nunca se sentiu vulnerável e preferiu resguardar-se a acrescentar um novo trauma aos seus sentimentos. E talvez seja por isso que a tal da sick-lit e a literatura dos narradores esquisitos cresça a cada dia...
Sentir! Sentir, sentir, sentir! Os sentimentos estavam atrapalhando minha sensação de bem-estar.
(p. 150)

Better hurt than to feel nothing at all (antes a mágoa que nada sentir), já dizia alguma música pop do rádio. Mas esta não seria uma definição apropriada ao personagem de Don Tillman, mesmo após duzentos e tantos questionários e também o sim de algumas mulheres que desafiaram as leis da probabilidade de relacionamentos com desconhecidos e aceitaram sair com Don para um jantar ou um baile, que obviamente revelaram-se desastrosas experiências sociais e nada românticas.
A cada página Don parece então se conformar com seu garantido método de existência baseado em um calendário de atividades alimentares, profissionais, esportivas e nada mais. Tudo o mais é vaidade e desperdício de tempo e energia. O livro, no entanto, é bem dinâmico e divertido, e pouco melancólico, apesar das diversas cenas em que as coisas amorosas não dão certo. Talvez a melhor forma para seguir vivendo seja essa mesmo, a de deixar-se doer menos, e consequentemente importar-se menos com a dor, especialmente quando esta é proveniente do amor.
Don Tillman é mesmo uma dessas pessoas de rigorosa apatia. Mas, de modo a contrariar a literatura melancólica de nossos dias, o personagem permanece apático só até certa parte do livro, só até que...

Rosie.
(contar o restante da história seria spoiler, então... leiam!, que o livro é também especialmente proveitoso e divertido)
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Graeme Simsion. O Projeto Rosie. RJ: Record, 2015.
Leia um trecho
Quotes e imagens do Filme Melhor é impossível (James L. Brooks, 1997).
Amo suas resenhas pelo simples fato delas serem diferentes! E sempre mostrar um novo ângulo do obvio! <3 Sua resenha me despertou a curiosidade de conhecer melhor o Tillman e seus "probleminhas" (ser sistemático demais mostra logo que a pessoa tem probleminhas!) e a Rosie que só de consegui surgir na vida dele (do jeito que ele é) já mostra-se ser fantástica!
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