Um Milagre de Natal
Daniel respira fundo ao parar diante do Hospital, encarando a fachada com a tintura já um pouco desbotada. Estranha o pouco movimento na entrada, mas pensando bem, como é Natal, talvez as pessoas saudáveis não queiram frequentar um ambiente tão deprimente como um Hospital Infantil. Ele certamente não queria estar ali, mas está preso a uma promessa da qual não pode se esquivar.
Depois de se identificar na recepção, pega o elevador para o 5° andar. Ao caminhar pelo corredor, sente as pernas vacilarem um pouco. É a primeira vez que faz esse trajeto sozinho. Durante 10 anos, ele acompanhou a esposa Rosana, nas visitas que ela fazia como voluntária, às crianças do 5° andar, o andar dos “doentes terminais”, como algumas pessoas se referiam. Ali, dezenas de crianças com doenças em estágio terminal, ficavam internadas até que a vida se esvaísse de seus corpos.
Rosana gostava de visitar essas crianças, ler para elas, brincar com elas, arrancar-lhes um esboço de sorriso que fosse. Quando lhe perguntavam por que ela se dava ao trabalho de passar um domingo inteiro na companhia de crianças que talvez ela não visse na próxima visita, ela dava um sorriso misterioso, como alguém que sabe de um segredo que mais ninguém conhece. Mas, para Daniel, ela respondeu uma vez, dizendo que a vida dessas crianças já era triste demais para que as pessoas ficassem apenas sentindo pena delas, que se ela pudesse tornar o dia dessa criança melhor, era sua obrigação fazer isso.
Desde esse dia, Daniel a acompanhava todos os domingos em sua jornada para fazer uma pequena diferença na vida daqueles seres que tão cedo, já conheciam as agruras da vida. Exceto pelo último domingo, onde nenhum dos dois compareceu ao Hospital. Rosana havia falecido no sábado anterior, enquanto dormia, numa passagem tão tranquila quanto sua personalidade, e o domingo havia sido dedicado em sua homenagem, num processo mais lento e doloroso do que Daniel esperara. Muitas pessoas haviam ido ao cemitério lhe prestar suas condolências, num desfile quase interminável de hipocrisia, enquanto internamente ele lutava para não gritar toda a dor que estava sentindo. Nenhuma daquelas pessoas sabia quem Rosana era de verdade.
Após finalizado o enterro, ele voltou para casa e junto com as filhas separaram todas as coisas de Rosana entre o que seria mantido com eles e o que seria doado. Foi um momento sublime, tantas doces lembranças suscitadas... Aquela era a verdadeira homenagem à Rosana, sua família unida, lembrando de todas as coisas boas que ela havia ensinado a cada um deles. No meio das coisas pessoais de Rosana, encontraram cartas endereçadas a cada um deles. Daniel pegou a sua nas mãos como se fosse um tesouro precioso e ao mesmo tempo temível. Só abriu à noite, quando se encontrava sozinho na casa que eles compartilharam durante 40 anos.
Na carta, Rosana declarava todo o amor que sentia pelo homem que havia dado o melhor de si para ela, exaltava alguns dos momentos mais memoráveis que passaram juntos e lhe fazia um pedido especial para quando ela não estivesse mais com ele: Daniel deveria continuar o trabalho que ela havia começado com aquelas crianças. Era um presente que ela lhe deixava. Ele não entendia como isso poderia ser um presente de início rejeitou completamente a ideia. Mas, com o passar dos dias, a ausência dela foi se intensificando e ele percebeu que se fosse ao Hospital, como eles faziam todos os domingos, talvez a saudade não doesse tanto.
Agora que chegara ao seu destino, tinha por consolo apenas a lembrança do cheiro dela, quando caminhava ao seu lado pelos quartos. Pensou em desistir e voltar para casa. Parecia-lhe muito cedo voltar à rotina, uma rotina que era dela. Mas, antes de conseguir se virar, viu uma cabecinha espiar por uma das portas. Um garotinho careca parecia brincar de esconde-esconde, pois toda vez que Daniel olhava em sua direção, ele sumia, e quando Daniel virava o olhar em outra direção, ele voltava a aparecer.
Daniel caminhou na direção do quarto do garoto, como se um fio invisível o puxasse naquela direção. Quando entrou no quarto, o menino estava deitado com o cobertor cobrindo seu corpo até acima do nariz e soltava risinhos divertidos. Daniel sentou-se na beirada da cama e sorriu para o menino que por fim, descobriu o rosto e sorriu abertamente para ele, um dos dentes da frente lhe faltando, mas deixando seu sorriso mais gracioso com isso. Num gesto surpreendente até para si mesmo, Daniel retirou a prótese dentária que usava e mostrou ao garoto que ele também era banguela. Ambos riram tão alto que a enfermeira veio à porta ver o que acontecia, enquanto eles tentavam controlar o riso.
Daniel sentiu seu peito se aquecer aos poucos, enquanto a tarde passava e ele se dedicava a arrancar cada vez mais risos daquele menino. Quando a enfermeira anunciou que o horário da visita havia terminado, Daniel sentiu seu interior se esfriar um pouco. O garoto impulsivamente abraçou Daniel, que demorou um pouco a retribuir por puro espanto, mas quando envolveu aquele pequeno em seus braços, entendeu qual era o presente a que Rosana havia citado em sua carta de despedida.
“Tio, eu te amo!”, disse o menino, mais uma vez surpreendendo Daniel, que do alto de seus 75 anos, percebeu que ainda tinha muito a aprender. Mas, ele estava satisfeito com a lição aprendida naquele dia, naquele Natal. Quando dedicamos nosso tempo para tornar o próximo feliz, aquela gota de alegria gerada retorna para nós em um mar que nos transborda e transforma, como só um verdadeiro milagre consegue realizar.
Feliz Natal!!!!!
Lindo. Muito lindo e tocante. Obrigada. :)
ResponderExcluirNós que agradecemos a sua participação aqui flor <3
ExcluirGostei muito do conto! Feliz natal para todos :)
ResponderExcluirFeliz Natal!!!
Excluir<3
Que lindo , Gih! Sua escrita ,como sempre, impecável. Conseguiu me transportar para a cena direitinho e o final foi emocionante.
ResponderExcluirAnne, Feliz Natal!!!
ExcluirObrigada por suas palavras! Bjos
<3