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fevereiro 17, 2017

Infinita Highway - Alexandre Lucchese | Editora Belas Letras



"Humberto nunca havia subido em um palco. Desde a adolescência, fazer música era um sinônimo de acolhimento. Dedo contra corda. Som se projetando. Quando a porta do quarto se fechava, cada acorde no violão sugeria outro, que sugeria outro, e assim iam se sucedendo. Um mundo de sons se formava e passava também a acomodar palavras, poesia anotada em folhas de papel." (p. 13)

Um livro sincero, como todo livro deveria ser. Especialmente quando a sinceridade diz respeito a uma vida (no caso, mais de três) que você viu de perto, ou meio assim de relance, em um registro de memória que em algum momento (ou sempre) revisitamos. Sob o olhar de quem não se desfaz de tamanha juventude, percebemos que a nostalgia é um sentimento também coletivo, e que o resgate de uma época quase sempre surge em tempos como agora, onde pouco é o pertencimento, ainda que muitas as estradas e geografias.

Com este sentimento em mãos, nasce uma Biografia, e já que vamos falar de Engenheiros, há que se dizer que Infinita Highway mantém-se fiel à memória e legado de seus personagens, e só por isso já merece um lugar de destaque neste nicho literário dedicado a cultura musical de nosso país. Afinal, o texto de Alexandre Lucchese é mesmo generoso neste sentido, pois apresenta a história da banda com rigor jornalístico, valendo-se de fatos e depoimentos de época, além de bate-papos e entrevistas recentes que contribuem para a forte autenticidade de seu texto.

Enquanto leitora, percebo um lugar comum entre os autores de biografias de personalidades nacionais, especialmente quando retratadas entre as conturbadas décadas de 1960 e 80 (e felizmente o texto do Lucchese passa bem longe disso); no caso, quando o autor se coloca como protagonista da história e, ao invés de resgatar a vida e obra de seus personagens, dedica inúmeros capítulos a narrativas pessoais e a discursos políticos. Ok, é bem possível que a proposta da obra seja uma reflexão maior que a particularidade de um ídolo, porém, não deveríamos chamá-la Biografia então. Recentemente, inclusive, em uma obra similar a dos Engenheiros (similiar, no caso, porque também sobre rock brasileiro), o autor não só dedicou um capítulo inteiro a suas visões políticas, mas fez questão de reafirmar suas inquietações panfletárias ao longo de todo o texto. Caro jornalista, sabemos que a história do Brasil foi e será sempre tumultuada, e que a gente por vezes sente mesmo uma necessidade de compartilhar textões sobre isso; porém, quando o leitor compra um livro a respeito de um artista ou banda, é bem provável (e óbvio) que ele queira ler sobre a vida e obra de seu ídolo, e não necessariamente umas 150 páginas contendo uma análise política de uma época, especialmente quando a visão nada imparcial do autor interrompe a narrativa biográfica para, por exemplo, saudar "um importante líder político e sindical da época". Desculpe, caro jornalista, mas sua bandeira política não interessa nem um pouco, e eu realmente lamento esta necessidade de obtenção de vendas de seu trabalho sob este artifício da panfletagem.

Um parêntese: peço desculpas ao Alexandre Lucchese por inserir este comentário na resenha, mas o seu trabalho de escrita junto a obra dos Engenheiros realmente se diferencia, e penso ser importante mencionar isto. Afinal, para o leitor, e principalmente para o fã, fatos e entrevistas e algum (muito) afeto por parte de quem escreve deveriam ser os principais objetivos de se escrever uma biografia, e encontrar essa honestidade no seu texto foi mesmo uma grande experiência, a qual não vou deixar de recomendar.

A vida imita o vídeo 
Garotos inventam um novo inglês 
Vivendo num país sedento 
Um momento de embriaguez 
Somos quem podemos ser 
Sonhos que podemos ter 

Somos quem podemos ser (1988)


"Sem muitos amigos, mas sempre com muitos fãs, a saga dos Engenheiros do Hawaii começava a extrapolar o circuito das pequenas danceterias de Porto Alegre. (...) Gessinger, ao menos aparentemente, não teve dificuldades em se fazer compreender para todo o Brasil. (...) Se, por um lado, havia um desejo de seguir na estrada, também ficava claro o desejo de abandoná-la quando o interesse deixasse de ser orgânico ou quando o som precisasse ser transformado por imposições internas. 'A gente está nessa história para continuar, tanto que fazemos a coisa de uma maneira superséria e acreditamos mesmo nela. Agora, a gente não pretende aposentadoria no INPS através da música. Vamos continuar tocando enquanto a coisa estiver viva, enquanto tiver sentido de ser', (...) afirmou Carlos Maltz em entrevista para a Revista ZH (Zero Hora), em 4 de janeiro de 1987." (p. 110 e 151)

De volta a história dos Engenheiros, quem é fã já sabe que a ideia da banda surge em meados da década de oitenta, nos anos da faculdade de Arquitetura, onde Humberto Gessinger e Carlos Maltz se conheceram e, ao longo de uma década, realizaram uma inconfundível parceria. Após algumas páginas de introdução de sua pesquisa, Alexandre Lucchese faz uma apresentação da cena rock de Porto Alegre, e também desta alguma distância entre a o sotaque do sul e sonoridade das outras capitais. Em paralelo a cronologia, o autor dedica capítulos aos primeiros acordes, vida e interesses de cada integrante - inclusive dos que fizeram parte da formação pré-Augustinho Licks, assim como às questões iriam nortear suas escolhas de carreira: "- Nós não éramos brothers de ninguém, nem de nós mesmos. Éramos completamente outsiders - conta Maltz. Tinha aquela questão do individual, herdado do romantismo alemão, de ser um indivíduo, da gente não fazer parte de nenhuma panelinha, de nenhum sindicato do rock." (p. 37)

Esta escolha por autenticidade teve um preço, e a sonoridade e versos que conquistaram o público eram as mesmas que distanciavam os Engenheiros do gosto da crítica e das bandas de seu tempo: "Revolta dos Dândis também pode ser lido como uma tirada irônica sobre a onda roqueira de meados dos anos 1980, nas quais muitas bandas que se diziam radicais e punks eram formadas por garotos de classe média que, como um dândi, se travestiam em uma forma diferente de vestir e agir no palco. Terra de Gigantes é a música que deixa mais clara essa intenção de questionar a suposta rebeldia do rock nacional, com o verso 'A juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante'." (p. 187)

(Qualquer semelhança com os dias de hoje...)


"A banda entrou nesse clube fechado não pela vendagem, mas pela credibilidade (...). Até hoje tem gente que não nos entende. Já essas bandas - Titãs, Legião, Paralamas - todo mundo sabe qual é a deles. (...) Nunca me senti tão pouco à vontade quanto no tempo em que minha banda teve exposição avassaladora. Nunca foi uma banda para ter aquele volume de exposição e ser hegemônica. (...) Gosto de fazer parte de uma indústria e saber que ela impõe limites fortes ao meu trabalho. A gente descobriu a dignidade de entreter. (...) É interessante você botar uma poeira na engrenagem, em vez de combatê-la de frente. Acho mais válido do que falar da polícia e da igreja. Isso é uma obviedade desgraçada." (p. 222, 236 e 243)

É claro que em toda relação há atritos, principalmente no que diz a criação artística, liderança e rumos coletivos; uma década de carreira talvez tenha sido pouco, mas tornar-se inesquecível na mente do ouvinte é quase um infinito. Embora grande a saudade, há que se respeitar a vida que cada um escolheu para si após o término da banda, assim como a relação que cada um estabelece com a obra realizada na juventude e a importância ou não de comentá-la hoje em dia. Ao leitor, fica o sentimento de que a biografia de Lucchese realmente respeitou a vontade e espírito de seus personagens, e, de forma gentil, contribuiu para a preservação deste importante capítulo da história da música, assim como o de nossa própria história.

Vida longa ao legado dos Engenheiros e ao honesto trabalho do jornalista Alexandre Lucchese!

Aliás, vale conferir uma entrevista com o autor no site da revista Scream and Yell :) Tá bem bacana!

Há espaço pra todos, há um imenso vazio
Nesse espelho quebrado por alguém que partiu
A noite cai de alturas impossíveis
E quebra o silêncio e parte o coração

Há um muro de concreto entre nossos lábios
Há um muro de Berlim dentro de mim
Tudo se divide, todos se separam
(Duas Alemanhas, duas Coreias)
Tudo se divide, todos se separam


Alívio Imediato (1989)



Alexandre Lucchese

Era pra ter durado uma noite só. Era pra ter sido somente uma banda de abertura. Era pra ter outro nome. Não era pra ser um trio. Eram várias variáveis. Graças a essa sucessão de fatos estranhos, quando não ter plano é o melhor plano, nasceu uma das maiores bandas do rock brasileiro: Engenheiros do Hawaii. Uma história cheia de lances improváveis que o jornalista Alexandre Lucchese conta nesta biografia, depois de ter entrevistado mais de uma centena de pessoas ligadas à banda, inclusive Humberto Gessinger, Carlos Maltz e Augusto Licks, o trio responsável pela fase de maior sucesso, que acabou se desfazendo anos mais tarde em meio a brigas e processos judiciais. Embarque na infinita highway para ver como nada do que foi planejado para a viagem deu certo, mas, nesse caso, ter dado tudo errado não poderia ter sido o mais certo.

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