navegar pelo menu
fevereiro 02, 2018

Trópico de Capricórnio - Henry Miller | Editora José Olympio

"Quando chegou a época de minhas férias — que eu não tirava havia três anos, tão ávido estava para fazer da empresa um sucesso! — tirei três semanas em vez de duas e escrevi o livro sobre os doze homenzinhos. Escrevi-o direto, cinco, sete, às vezes oito mil palavras por dia. Pensei que um homem, para ser escritor, tinha de escrever pelo menos cinco mil palavras por dia. Pensei que devia dizer tudo de uma vez — num único livro — e desabar depois. Eu não sabia nada sobre a escrita. Me caguei de medo. (...) Era um tomo colossal e cheio de defeitos do princípio ao fim. Mas foi meu primeiro livro e me apaixonei por ele. Se tivesse dinheiro, como Gide, eu o teria publicado às minhas custas. Se tivesse tido a coragem de Whitman, eu o ofereceria de porta em porta. Todos a quem o mostrei disseram que era terrível. Exortaram-me a desistir da ideia de escrever. Tinha de aprender, como Balzac, que é preciso escrever volumes antes de assinar um deles. Tinha de aprender, como logo fiz, que se deve desistir de tudo e não fazer mais nada além de escrever, escrever, escrever, escrever, mesmo que todos no mundo nos aconselhem contra isso, mesmo que ninguém acredite na gente. Talvez a gente insista exatamente porque ninguém acredita; talvez o verdadeiro segredo esteja em fazer as pessoas acreditarem. Que o livro fosse inadequado, cheio de defeitos, ruim, terrível, como diziam, era simplesmente natural. Eu tentava fazer no começo o que um homem de gênio só tenta no fim. Queria dizer a última palavra no começo. Era absurdo e patético. Foi uma derrota arrasadora, mas me pôs ferro na espinha e enxofre no sangue. Pelo menos eu sabia o que era fracassar. Sabia o que era tentar uma coisa grande."

Escrever, escrever, escrever, ainda que a vida perca o sentido. Ou justamente por isso. Trópico de Capricórnio, originalmente publicado em 1939, é uma espécie de biografia ficcional de seu autor, Henry Miller, centrada em suas primeiras décadas de vida (que coincidem com o início do século 20) como um cidadão comum na América. O dia-a-dia do trabalho e das relações familiares era, para Miller, tanto em suas personagens como em sua realidade de escritor, de uma amargura sem fim. E quando o espírito se abate, pelo menos na concepção do autor, tal inquietação parece evadir-se apenas fora do cotidiano e sua normalidade.

Não há o que romantizar, no entanto. A angústia e a revolução (tanto a sexual como a bélica) eram como um "espírito de época" que já ocupava a Europa havia alguns séculos, e certamente também a América nestes mil novecentos e vinte de Miller. Ao passo em que haviam fábricas e plantações, bancos, pólvora e cozinheiras, entre os profissionais da cultura e da política e, principalmente, os da academia, havia uma indisfarçável distância (social e intelectual; quiçá repulsa) com a vida comum do cidadão comum, filho do suor e do não-letramento, da mentalidade simples e do preconceito, desta existência que se arrastava e se fortalecia e, por vezes, sim, em muitas das vezes, perecia.

Era nítida a genialidade de Henry, venerada especialmente por seus pares literários, dentre eles, George Orwell, que conferiu ao autor uma nota em seu ensaio Inside the Whale, de 1940: "Em minha opinião, eis o único autor de prosa-imaginativa de valor que surgiu entre os falantes de língua inglesa dos últimos anos. (...) Miller é um autor fora do comum, cuja obra vale mais que uma simples leitura; afinal, ele é um completo pessimista, um desconstrutor, um escritor amoral, (...) um servo do mal, uma espécie de Whitman por entre os cadáveres.". Embora uma individualidade marcante, Henry não escapou ao pensamento e ideologia de época, principalmente em seus anos de vida no epicentro chamado Paris. Se havia uma ruptura nos modos sociais e políticos, esta deveria também transbordar no escopo literário de seus agentes. Trópico de Câncer, por exemplo, sua primeira obra publicada em solo francês, já anunciava esta fusão entre autobiografia e ficção, e adicionava uma liberdade estética pouco encontrada na literatura de seus dias. Sobre o autor, nada como a fala de Anäis Nin, escritora, amante e companheira de Miller: "Eis um livro que, se tal fosse possível, talvez restaurasse nosso apetite pelas realidades fundamentais. A nota predominante parecerá de amargura, e amargura existe, ao máximo. Contudo, há também uma selvagem extravagância, uma louca jovialidade, uma verve, um prazer, às vezes quase um delírio. Uma oscilação continua entre extremos, com passagens cruas que têm o gosto da impudência e deixam o pleno sabor do vazio. Fica além do otimismo e do pessimismo. O autor deu-nos o último "frisson". A dor não tem mais recessos secretos." (trecho do prefácio de Trópico de Câncer).


A angústia e o vazio, assim como o niilismo e a destituição de autoridades e paradigmas eram, por assim dizer, pilares da produção cultural desta efervescente Paris dos anos Miller. No entanto, apesar de considerada uma obra-marco da liberalidade sexual, acredito ser necessária também uma leitura -que se dedique a esta insatisfação e quase impossibilidade de tornar concreto o ofício de escritor, para assim evitarmos um comentário focado apenas nas formas com que a espécie humana extravasa sua libido e satisfaz sua existência. Os Diários de Anäis Nin (1932-1934), por exemplo, certamente já cumprem - e bem - esta tarefa. Caso o leitor tenha em mente obras afins relacionadas a este tema (tanto o da liberdade quanto o da angústia), sinta-se à vontade para compartilhar referências com a gente :)

Aos interessados nesta "angústia da escrita", recomendo principalmente Nexus, publicado em 1959 e parte da trilogia The Rosy Crucifixion, composta ainda pelas obras Sexus (1949) e Plexus (1953). Aliás, há uma passagem bem interessante sobre este "mal estar da literatura" também em  Trópico de Câncer (1934), obra que antecede Trópico de Capricórnio:

"'Faça-o!' digo eu. 'Faça uma coisa ou outra, seu bastardo, mas não procure nublar meu olho sadio com seu hálito melancólico!' Mas é assim mesmo! Na Europa, você se acostuma a não fazer nada. Você se senta sobre a própria bunda e choraminga o dia inteiro. Você fica contaminado. Apodrece. Fundamentalmente, Carl é um esnobe, um pistolinha aristocrático que vive num reino de demência precoce só seu. 'Odeio Paris!' choraminga ele. 'Todas essas estúpidas pessoas jogando cartas o dia inteiro... veja-as! E este negócio de escrever! De que adianta juntar palavras? Posso ser escritor sem escrever, não posso? O que prova, escrever um livro? Afinal, para que queremos livros? Já existem livros demais...'

Que coisa! Mas eu já passei por tudo isso - há anos e anos. Vivi minha mocidade melancólica. Não dou mais nada pelo que existe atrás de mim ou à minha frente. Sou sadio. Incurávelmente sadio. Nem tristezas, nem remorsos. Nenhum passado, nenhum futuro. O presente é bastante para mim.


Segue-se isto: 'Todos querem ver-me. Todos insistem em falar comigo. Pessoas infernizam-me e infernizam outros com perguntas sobre o que estoufazendo. Como estou eu? Estou de novo perfeitamente bem? Ainda dou meus passeios pelo campo? Estou trabalhando? Terminei meu livro? Começarei outro logo?"

Como vemos, em ambos os Trópicos, o real e o devaneio são, para o autor, experiências vitais e indistintas. O que difere tais volumes, se pudermos assim generalizar, seria a "função da memória", que, em Trópico de Capricórnio, ocupa um maior protagonismo, onde, de forma quase direta, chega a citar uma das mais famosas passagens literárias a respeito das reminiscências de nossa lembrança e pensamento (a saber, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust):

"Existe algo no gosto do pão de centeio que estou tentando descobrir - algo vagamente delicioso, aterrorizante e libertador, algo ligado às primeiras descobertas. (...) O que me tenha sido transmitido nesses momentos, parece ter sido retido intacto, e não há receio de que eu perca o conhecimento assim adquirido. Talvez fosse apenas o fato de não ser o conhecimento como em geral o concebemos. (...) O que me espanta, quando olho para trás, é como entendíamos bem uns aos outros, (...) jovens ou velhos. Aos sete anos de idade, sabíamos com absoluta certeza, por exemplo, que tal sujeito ia acabar na prisão, que outro trabalharia como escravo, que outro seria inútil, e assim por diante. (...) Do dia em que fomos para a escola em diante, não aprendemos nada; pelo contrário, tornamo-nos mais obtusos, envolveram-nos num nevoeiro de palavras e abstrações."

Trópico de Capricórnio é um livro que deveria ser lembrado por sua imperfeição. Porque há sexo demais, porém o sexo é o de menos. Ainda mais agora, décadas após seu lançamento, onde, para além da "renormatização" do corpo, podemos enfim nos perguntar os porquês de ainda se acreditar na escrita enquanto melhor-ofício e objetivo de vida.

Porque embora o homem (tanto o personagem como Miller) se ocupe de sua carne e pêlos, seus gastos e repulsas e de sua pura despesa (e ainda, de sua "mera esperteza", pra não perdermos a rima), em Trópico de Capricórnio há o testemunho de que nem toda existência deveria tornar-se pública (principalmente a que se embebeda de amores, tanto os de castidade como os de profanação), e muito menos subjugada ao político (afinal, novos costumes e concessões acabam por constituir novos sistemas, não deixemos nos enganar). Sobre o legado de Henry Miller, podemos dizer que suas narrativas se estendem por entre a extravagância e a agonia, e pelas consequências de quaisquer atos e instintos. Porque a vida é como um êxtase e se esvai. E nos fere de forma irreversível, como um poema ou um tiro.

“Assim como a própria cidade se tornara um imenso túmulo em que os homens lutavam para conquistar uma morte decente, também minha vida veio a parecer um túmulo, que eu construía a partir de minha própria morte. Eu vagava por uma floresta de pedra cujo centro era o caos; às vezes, no centro mesmo, no coração mesmo do caos, eu dançava e bebia estupidamente, ou fazia amor, ou amizade com alguém, ou planejava uma nova vida, mas era tudo caos, tudo pedra, e tudo irremediável e desconcertante.”

(...) Quando olho para trás, parece-me que jamais fiz nada por vontade própria, mas sempre por pressão dos outros. As pessoas muitas vezes me acham um cara aventureiro; nada pode estar mais longe da verdade. Minhas aventuras sempre foram adventícias, sempre empurradas para cima de mim, sempre mais suportadas do que empreendidas. (...) Pois só há uma grande aventura, e esta é para dentro do eu, e para isso nem tempo, nem espaço, ou mesmo atos contam.

(...) Tudo que acontece, quando importante, é assim como uma contradição. Até aparecer aquela para quem escrevo isto, eu imaginava que em algum lugar por aí, na vida, como dizem, está a solução para tudo. Pensava, quando dei com ela, que me apoderava da vida, agarrava uma coisa que podia morder. Em vez disso, perdi completamente o controle da vida. Procurei alguma coisa a que me ligar - e não encontrei nada. Mas ao procurar, no esforço de agarrar-me, ligar-me a algo, perdido como estava, ainda assim encontrei o que não procurava - eu mesmo. Descobri que o que desejara a vida toda não fora viver - se o que os outros fazem se chama viver - mas me expressar." 


 "Assim passam os momentos, momentos verídicos de tempo sem espaço nos quais sei tudo e, sabendo tudo, desabo sob a abóbada do sonho altruísta.

Entre esses momentos, nos interstícios do sonho, a vida tenta inutilmente construir, mas o andaime da louca lógica da cidade não é apoio. (...) Meus olhos são inúteis, pois devolvem apenas a imagem do conhecido. (...) A cidade cresce como um câncer; devo crescer como um sol."

Trópico de Capricórnio - Henry Miller 
Editora José Olympio

Sinopse: Cinco anos depois da publicação do escandaloso Trópico de Câncer (1934), Henry Miller lançou este Trópico de Capricórnio (1939). Não repetia a fórmula anterior, apesar de o erotismo e a sexualidade ainda serem extremamente evidentes, mas alcançava um tom mais subjetivo e mais denso. Nele, Miller conta seu passado em Nova York, história-mito anterior à parisiense relatada no primeiro livro. Um passado permeado por considerações existenciais e em tons de cinza, da falta de trabalho e de dinheiro a um emprego odioso.

Com toques autobiográficos, a história se passa nos anos 1920 e relata um passado permeado por considerações nada otimistas: “Meu amigo Kronski zombava de mim por minhas ‘euforias’. Era a forma disfarçada que tinha de me lembrar, quando eu estava extraordinariamente alegre, que no dia seguinte estaria deprimido. Era verdade. Eu só tinha altos e baixos. Longos períodos de tristeza e melancolia, seguidos por extravagantes explosões de alegria, de uma inspiração que parecia um transe. Jamais um nível em que fosse eu mesmo. Soa estranho dizer isso, mas nunca fui eu mesmo. Ou era anônimo ou a pessoa chamada Henry Miller elevada à enésima potência.”

Trópico de Capricórnio não é libertário como Trópico de Câncer. Pelo contrário, nele, o sexo parece mais escapismo do que celebração, fuga de uma realidade cruel e opressora. Mas, mesmo pessimista, a situação extremada parece pedir uma reação, que, como se sabe, viria com a ida a Paris.

Trópico de Capricórnio mantém a sexualidade e o erotismo em primeiro plano, porém não é simplesmente uma repetição dos temas e do estilo apresentados em Trópico de Câncer. Por meio de uma narrativa ainda mais densa e subjetiva, Henry Miller desfia seu passado em Nova York durante os anos 1920 – antes de embarcar para Paris e fazer da capital francesa a sua festa individual.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial