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setembro 11, 2017

A Senhora de Wildfell Hall - Anne Brontë | Editora Record | Texto por Regiane Medeiros


Muitos são os motivos que me levam a me interessar por uma leitura. Se o livro é um clássico da literatura, meu interesse redobra, especialmente se a tal obra não é muito conhecida, embora o sobrenome do autor seja um dos mais notórios quando se trata de literatura inglesa. Afinal, quem nunca ouviu falar das irmãs Brontë? Certamente muitos leitores conhecem Emilly, autora de O Morro dos Ventos Uivantes e seu trágico Heathcliff. Também devem conhecer ou ter ouvido falar ao menos, de Charlotte e o brilhante Jane Eyre. Mas pouca gente conhece a irmã mais nova, Anne, que assim como as irmãs mais velhas, iniciou sua carreira literária fazendo uso de um pseudônimo masculino, algo bem recorrente na Europa do séc. XIX.

Anne escreveu apenas dois livros: Agnes Grey, que é o mais conhecido e A Senhora de Wildfell Hall, objeto de minhas atuais reflexões. O fato mais curioso a respeito dessa obra e que obviamente, me fez ansiar ainda mais por essa leitura, foi a descoberta de que o texto foi condenado pelas próprias irmãs de Anne. A família Brontë foi quase toda dizimada pela Tuberculose e Anne morreu precocemente vítima desse mal antes de Charlotte, que ficou com os direitos da obra literária das irmãs, impedindo a publicação desse texto específico, considerando-o como muitos críticos na época, exagerado e contundente na descrição das relações desproporcionais entre homens e mulheres. O texto só veio a ser republicado em 1855 após a morte de  Charlotte, mas quando viva, Anne escreveu um prefácio para a segunda edição, após ter sofrido reprimendas sobre a forma e tema de sua escrita, onde explica seus motivos para abordar o assunto e sua maneira para isso, deixando claro que tudo o que envolve o enredo se trata de observações da vida real e que seu maior desejo com essa abordagem, é o de que o leitor aprenda e não repita os erros expostos de seus personagens:

“Meu propósito ao escrever as páginas seguintes não foi apenas divertir o leitor; tampouco satisfazer meu próprio gosto ou ganhar as boas graças da imprensa ou do público: meu desejo era relatar a verdade, pois a verdade sempre comunica sua própria moral para quem é capaz de absorvê-la(...). Que não se imagine, no entanto, que eu considere ter competência para reparar os erros e abusos da sociedade, mas que deseje contribuir com minha humilde cota para um propósito tão bom; e que, se os ouvidos do público estão voltados para mim, prefira sussurrar neles algumas verdades saudáveis a bobagens sem sentido” – prefácio à segunda edição, presente na edição integral publicada pelo Grupo Editorial Record.

A história retrata a jornada de Helen Graham, jovem viúva que se muda para Wildfell Hall, propriedade que fica em alguma cidade rural da Inglaterra. Sua chegada, gera especulações por parte da vizinhaça, já que a mesma não cumpriu os rituais sociais de visitar e se apresentar aos vizinhos, nem foi à igreja no primeiro domingo após a sua mudança. Intrigados, os moradores das redondezas começam a fazer visitas à nova vizinha, em busca de informações sobre sua vida e rotina, geralmente saindo frustrados desses encontros, já que a sra. Graham é muito discreta com relação ao próprio passado e não esconde o desejo de ficar sozinha quando assim o deseja.

Entre os vizinhos intrigados, encontra-se Gilbert Markham, um jovem fazendeiro que assume o cuidado das terras da família com as próprias mãos, cultivando e fazendo melhorias em suas terras junto com os empregados. À primeira vista, há um choque não apenas cultural como também de opiniões entre Gilbert e Helen, gerando um estado de tensão, sempre que há a necessidade de um encontro e conversa entre ambos.

“’É bem como eu achei’, pensei com meus botões. ‘O temperamento dessa senhora não é dos mais afáveis, apesar de seu rosto doce e pálido e da testa imponente, onde a reflexão e o sofrimento parecem ter deixado marcas igualmente fundas’” – pág. 36.


O mal-estar entre eles, começa a se dissipar a partir do momento em que Arthur, filho da sra. Graham demonstra simpatia e uma certa predileção pela companhia de Gilbert durante os encontros sociais a que comparecem, fazendo com que os jovens sejam mais amistosos um com o outro e uma genuína admiração surja no coração de Gilbert, ao constatar que se precipitou em suas opiniões a respeito de Helen.

“Nos casos de amor, não há mediador melhor do que uma criança alegre, de alma simples – sempre pronta a unir corações separados, a construir uma ponte sobre o abismo hostil do costume, a derreter o gelo da reserva e a destruir as muralhas da formalidade e do orgulho” – pág. 96.

Com a passagem do tempo, uma delicada amizade surge entre eles e Gilbert descobre na sra. Graham uma mulher culta, que quer ter uma vida comandada por si própria, sustentando a si e ao filho com o que ganha vendendo obras que ela mesma pinta, encantando-o com sua sensibilidade e destreza ao transpor para as telas, paisagens que ele conhece desde sempre, mas que agora vê com outros olhos ao enxergá-las pelo olhar da mulher que vem conquistando seu coração ao demonstrar força de caráter, uma moral elevada e uma maturidade para ensinar o caminho do bem ao filho, como ele nunca viu em nenhuma mulher de seu convívio. Aliás ao comparar Helen com as demais, percebe o quão fúteis e rasas elas são, perto da mulher que possui um olhar da vida cheio de uma sabedoria que geralmente só quem já viveu muito e passou por muitas provações tem.

É claro que não demora e o comportamento da sra. Graham, a sua severidade ao condenar determinados costumes, como o consumo de álcool ainda que com moderação e a insistência em privar seu filho de experimentar determinadas situações, leva a um falatório maldoso por parte daqueles que tentam, mas não conseguem adentrar a muralha que ela ergueu sobre seu passado e nosso jovem apaixonado, crente de que tudo o que dizem a respeito dela não passa de mentiras, a defende ardentemente, levando os demais a suspeitar de seus sentimentos para com a viúva. Sentimentos, que ela conhece, mas prefere ignorar até quando é possível e quando finalmente Gilbert não consegue mais guardar o que sente para si, Helen toma a decisão de contar a ele seu passado, para que então ele decida se ela é digna de seu afeto ou não.

“É possível olhar nos olhos de alguém, ver o coração da pessoa e descobrir mais sobre a altura, a largura e a profundidade de sua alma em uma hora do que em uma vida inteira, se o outro não estiver disposto a revelá-la ou se você não tiver a inteligência de compreender o que vê” – pág. 102.

Mas essa conversa não chega a acontecer, devido a um acontecimento que deixa Gilbert atormentado por dúvidas e frustração, que ele ao invés de tentar elucidar, prefere tratar Helen com o mesmo desprezo que condenou em seus pares anteriormente. Após um desentendimento entre eles, Helen entrega a Gilbert seu diário, pendindo que ele o leia e só então a procure, para que eles conversem a respeito. Porque é claro que Helen tem um passado, do qual foge para salvar a si e ao filho e que pretende esconder de todos. Exceto de Gilbert.


Anne Brontë, de fato é uma autora contundente em suas palavras. Através de Helen, podemos ter um vislumbre de tudo o que ela reprovava no comportamento das pessoas, na pequena sociedade em que vivia, bem como do horror que ela provavelmente presenciou para falar com tanta propriedade de relações tóxicas, sejam elas entre um casal, sejam entre os membros de uma comunidade. Sua narrativa é instigante, falando diretamente conosco através das cartas emitidas por Gilbert para o cunhado, onde ele descreve todos os acontecimentos e os próprios sentimentos em relação a tudo o que aconteceu desde a chegada de Helen Graham à vizinhança, não nos poupando de nada do seu temperamento que varia entre o extremamente feliz até o miserável torturado pela dúvida. 

Dono de uma personalidade intensa, Gilbert vive tudo muito ao extremo e nos leva junto com ele na jornada que mudou seu coração e sua vida. De um jovem irreverente, que não se preocupa muito com os sentimentos dos outros, ele se transforma em um homem maduro, consciente do seu papel na sociedade e na família, enxergando e tentando corrigir os próprios erros e defeitos, a fim de se tornar uma pessoa não só digna de ser amado, mas também um homem digno de ser respeitado.

Quanto à Helen, é impossível não ter empatia imediata com ela. Delicada, mas firme, ela não tem tempo nem paciência para alimentar relações vazias. Atua em sociedade quando é preciso, para que o filho não seja alvo de ostracismo, mas não faz muita questão de companhias que em nada lhe acrescentam. Com sua atitude honesta, acaba sendo confundida com alguém cheia de soberba e pompa, que quer ser superior aos outros, mas diante desse julgamento, ela simplesmente se retira e ensina o filho a fazer diferente das pessoas que a julgam erroneamente, preparando-o para o mundo ao invés de deixá-lo sofrer as consequências de atos impensados.


Os personagens secundários são muito bem elaborados e dão o suporte necessário para que a trama, que é um pouco longa, não seja cansativa e dou um destaque especial a Arthur, que é um menino inteligente e muito observador, soltando algumas pérolas durante a história que nos fazem rir ou chorar, dependendo do momento.

Eu já havia lido O Morro dos Ventos Uivantes de Emilly, obra que tem uma trama muito forte, com personagens intensos, mas que não me conquistou completamente – me julguem, mas eu odeio Catherine e tudo o que ela fez com todos a seu redor – e já vi uma adaptação da BBC para Jane Eyre da Charlotte, que me deixou com os cabelos em pé ao descobrir o segredo de Edward Rochester, o “mocinho” da história. Comparando o que conheço dessas obras com o texto de Anne, ainda estou tentando entender porque ela foi tão mal apreciada na época. Talvez seja o fato de que ela não usou de fatos fictícios exagerados em sua trama, ela simplesmente retratou o que provavelmente aconteceu em muitos lares da época e que sinceramente, continua acontecendo nos dias de hoje. 

Uma trama com acontecimentos mirabolantes e surpreendentes, nos mantém presos sim e claro que a impressão causada pela surpresa e o choque contam muito na hora de dizer se uma obra é realmente boa ou não. Mas, particularmente, eu gosto de uma leitura mais próxima da realidade quando se trata de um romance histórico, gosto de saber como eram as sociedades antigas e seus costumes, gosto de entender os jogos políticos e sociais que eram feitos e isso não desabona um livro para mim, ao contrário, eu aprecio e comemoro por saber que algum autor foi capaz de transformar relações cotidiandas em algo digno de ser lido e reeditado tanto tempo depois de seu primeiro original vir a público. Talvez por isso, Anne tenha acabado de se tornar a minha favorita entre as Brontë, porque sua obra é exatamente assim, cotidiana e real, nos transportando diretamente para uma fazenda na Inglaterra do séc. XIX, para vivenciarmos junto com um inteligente e sagaz rapaz, o que o amor é capaz de fazer na vida de uma pessoa.

Espero que vocês que apreciam romances históricos, venham a conhecer essa obra incrível, que merece por muito tempo ainda, o destaque que lhe foi negado de berço.

“Todos os romances são, ou deveriam ser, escritos para os homens e as mulheres lerem, e não compreendo como um homem poderia se permitir escrever algo que seria realmente desonroso para uma mulher, ou por que uma mulher deveria ser repreendida por escrever algo que seria apropriado para um homem e digno dele”. Anne Brontë – 22 de Julho de 1848.


A Senhora de Wildfell Hall - Anne Brontë

Filha mais nova da família Brontë, Anne era irmã de Emily Brontë, autora de O morro dos ventos uivantes, e de Charlotte Brontë, autora de Jane Eyre — livros clássicos e reeditados até hoje. Anne Brontë (1820-1849) desafia as convenções sociais do século XIX neste romance, A senhora de Wildfell Hall. A protagonista da obra quebra os paradigmas de seu tempo como uma mulher forte e independente, que passa a comandar a própria vida. Ao chegar à propriedade de Wildfell Hall, a Sra. Helen Graham gera especulação e comentários por parte dos vizinhos. O jovem fazendeiro Gilbert Markham, por sua vez, desperta um grande interesse pela moça e, aos poucos, vai criando uma amizade com ela e com seu filho. Porém, os segredos do passado da suposta viúva e seu comportamento arredio impedem que o sentimento nutrido pelos dois se concretize, fazendo com que Gilbert tenha dúvidas sobre a conduta da moça. Quando a Sra. Graham permite que ele leia seu diário a fim de esclarecer os fantasmas do passado, o rapaz compreende os tormentos enfrentados por aquela mulher e as razões de suas atitudes. Ela narra sua história até então, desde a relação com um marido alcoólatra e de conduta abominável até a decisão de abandonar tudo em nome da proteção do filho.

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