navegar pelo menu
maio 29, 2016

O Poeta da Madrugada, de Alceu Valença



Leia saudade quando escrevo solidão.



Alceu Valença, O Poeta da Madrugada. Portugal: Chiado Editora, 2015


Qual o intervalo entre a música e a poesia? Se fôssemos conversar sobre a origem das palavras, encontraríamos na cultura grega a melhor das definições: durante milênios, em um mundo anterior à escrita, os povos se reuniam para ouvir os sábios, também chamados poetas, que com suas palavras tornavam presentes os acontecimentos do passado, assim como os dos dias seguintes. No início do mundo, a realidade era a própria Palavra, que de mãos dadas com a memória era também sinônimo de música, e especialmente poesia.

Não nos cabe aqui complicar a Filosofia; aos interessados, recomendo este livro, e seguimos para falar de Alceu, que com a sabedoria dos bardos há quase meio século dedica-nos o seu mundo em canções e versos. 

A história de Alceu Valença tem como ponto de partida a cidade de São Bento do Una, no interior de Pernambuco, onde com seus avós conheceu a poesia, assim como a música, sob o legado de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro e outros mestres nordestinos.

Ao completar 45 anos de carreira, publica O Poeta da Madrugada (Chiado Editora, 2015), uma coletânea de escritos produzidos desde a juventude, em uma época como 1968, onde a vida era um trópico de sol e insônia, e também boemia, saudade, sertão. Afinal, seja em Pernambuco ou no mundo antigo, a poesia continua sendo a musa de nossos dias, assim como a música de nossa existência. E cabe a nós esta celebração.


Acredito que mesmo quem nunca ouviu Alceu cantar, quem não o conheça enquanto cantor, rapidamente se aperceberá de que estes são versos nascidos para a música. Ou melhor: são versos que já trazem consigo a música, uma melodia interna, que permanece em nós, que continua reverberando em nós, mesmo depois que nos afastamos deles.

Sempre que vejo a lua, sempre que a vejo alta e redonda, lembro-me daquela noite, já distante, em que ouvi Alceu cantar. Sempre que me perguntam para que serve a poesia lembro-me dessa noite. A poesia não serve. A poesia não explica. A poesia é aquela lua brilhando (brilhando apenas) na infinita escuridão." (Prefácio por José Eduardo Agualusa, escritor angolano)


O Poeta da Madrugada é uma publicação organizada em dois capítulos: o primeiro, Quase uma biografia, reúne dez poemas em uma espécie de 'linha do tempo', ou itinerário, que parte do agreste, e segue pelo Recife, até São Sebastião do Rio de Janeiro. Neste percurso, o poeta perde-se por entre estradas e amores, e em seguida encontra-se nestes mesmos caminhos.

A segunda parte, Poeta das cidades, da solidão, do amor, do tempo e da saudade... guarda poemas das décadas seguintes, alguns musicados, ao ritmo da voz do pandeiro do repente e do noturno lamento, onde a solidão constrói mundos, e inaugura sonhos, não importa se com os muros que nos cercam ou com os passos que não esquecemos.



Na Primeira Manhã 
(1980)

Na primeira manhã que te perdi
Acordei mais cansado que sozinho
Como um conde falando aos passarinhos
Como uma bumba-meu-boi sem capitão
E gemi como geme o arvoredo
Como a brisa descendo das colinas
Como quem perde o prumo e desatina
Como um boi no meio da multidão

Na segunda manhã que te perdi
Era tarde demais pra ser sozinho
Cruzei ruas, estradas e caminhos
Como um carro correndo em contramão
Pelo canto da boca num sussurro
Fiz um canto demente, absurdo
O lamento noturno dos viúvos
Como um gato gemendo no porão
Solidão.


O Poeta da Madrugada é então uma leitura de muitas estradas, que na voz do autor transformam-se em uma grande viagem, onde o nordeste, o Rio e São Bento são apenas atalhos para mais um capítulo deste país chamado Música Brasileira, ou apenas Alceu Valença.




Recomeçando das cinzas
Vou renascendo pra ela
E agora penso na réstia
Daquela luz amarela

E agora penso que a estrada
Da vida tem ida e volta
Ninguém foge do destino
Esse trem que nos transporta


(Sete Desejos)


4 comentários:

  1. Que delícia poder presenciar pensamentos de alguém que tanto influencia a cultura do nosso país e que se mantém atemporariamente exercendo seu papel de mostrar que o bom uso da palavra, pode nos fazer viajar sem sair do lugar, seja lendo um livro, seja ouvindo uma música.
    Beijo, beijo!

    Blog da Gih

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Impossível não apreciar os poetas da música brasileira! <3 Gosto demais desse momento experimental anos 70: do instrumental aos versos, cada nova escuta será sempre surpreendente! E encontrar essa música enquanto livro foi também uma bela experiência. Recomendo demais, amiga! :) Bjs

      Excluir
  2. Lindo demais seu blog, adorei. Esse layout minimalista tb. O conteúdo é meigo e diferente, amei!
    Estava resistindo a comentar pq essa caixa do blogspot é meio louca, a gente nunca sabe se foi ou não, mas aqui estou eu... rs tinha de dizer algo :) Estou seguindo no instagram tb, amei tudo.
    Tb tenho um blog e falo sobre livros/poesia etc. http://1pedranocaminho.wordpress.com
    Bjos!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Awwwww obrigada pela visita! <3 <3 Também me identifiquei com sua página, e escrita, e leituras compartilhadas! :) Seja bem vinda ao nosso cantinho! Com certeza estaremos visitando também o seu caminho :) Bjs

      Excluir

Postagem mais recente Postagem mais antiga Página inicial