“Os bretões vieram para a Bretanha na terceira era do mundo; e na quarta, os escotos se apoderaram da Irlanda. Os bretões, que, por não contarem com eventuais hostilidades, estavam desprovidos dos meios de defesa, foram atacados hostil e incessantemente tanto escotos do oeste como pelos pictos do norte.
- Como assim? Eles nunca resistiram?
- Tentavam resistir, mas a ferocidade dos pictos e escotos era sem igual.
No entanto, e preciso lembrar que também houve a fase de dominação de um povo muito poderoso, os romanos, de que tu com certeza já ouvistes falar.”
Há certo tipo de história cuja intensidade do enredo e a solidez afiada de ideias emergem feito iluminuras vítreas por trás de nossos olhos, como se de algum modo sempre estivessem escondidas por lá. De repente, a lâmina escapa desse prisma e simplesmente nos corta. No lugar do ferimento se abre uma trilha íngreme que nos eleva à compreensão de coisas tão essenciais, como, por exemplo, a brutalidade do mundo natural, nossas raízes familiares e até as virtudes necessárias para que deixemos de ser meras individualidades a mercê no cosmos ou animais sociais cuja existência se sedimenta no tempo. Para além de toda margem da dúvida, posso finalmente aqui afirmar que “Angus, O Primeiro Guerreiro”, de Orlando Paes Filho, é uma bela iluminura de sangue, aço e espírito. Assim, comparo cada palavra escrita com as pinturas feitas pelo próprio autor para esta edição: a narrativa ambientada durante a Alta Idade Média pulsa feito ferro sob marteladas em uma forja.
Pelo ano de 545 D.C., Columba, um monge eremita, atravessa belas e perigosas paragens bretãs para reunir-se com sete mais importantes druidas. Diante de todos, as cortinas do inferno se abrem e desvelam a profecia que lançaria o mundo ao seu fim através das forças “do-olho-que-tudo-vê. E para se evitar o triunfo do mal, na mesma visão pulula em meio a névoa uma espada a ser forjada por aqueles druidas conhecedores da nobre arte. Após o prólogo, somos arremessados diretamente no olho do tornado das invasões vikings que atormentaram a Europa, no ano de 865 D.C. Sob o olhar do jovem Angus, de apenas 16 anos, testemunhamos a voracidade e violência de povos nórdicos, cujo sustentáculos do seu governo são a guerra, a pilhagem e a comercialização de escravos com povos de tradição escravagista, como os médio orientais.
“Era muito bom ver o contentamento daquela gente. Mães reencontrando filhos, pais quebrando grilhões de crianças e jovens, antes nuas em pêlo, agora vestidas por seus companheiros. E todos, felizes em seus trapos, em um farrapo de vida recuperada, apesar de sua existência ter sido transformada em frangalhos por Ivar e seu filho bastardo, choravam copiosamente de alegria. Sim, eles estavam felizes, pois os barcos que aquelas famílias agora terminavam de construir e os outros que tinham conseguido recuperar eram os mesmos que os iriam levar, dentro de alguns meses, num futuro próximo e até havia pouco inevitável, para os mercados mouros e hebreus, onde seriam vendidos como animais, onde as mulheres seriam prostituídas, onde as crianças seriam açoitadas e onde os homens competiriam com os cavalos, executando trabalhos pesados até a morte.”
Nesta história, o sangue não nutre apenas as sensações do leitor ávido por batalhas mortais, mas nos conduz também por uma dura trilha de elevação espiritual. Seawulf, pai de Angus, tomara como esposa uma mulher cristã pertencente ao povo picto, consagrando o jovem à dupla herança familiar. É de Seawulf que ele aprende as primeiras lições sobre vida e morte, honra e sensatez. A prova de maturidade de Angus será a guerra. Seawulf e sua tribo foram convocados à conquista da ilha bretã, conduzidos por Ivar, apelidado de “o sem ossos”, cujo pai fora jogado em um poço com serpentes. A estratégia do guerreiro de sangue de gelo se afirma como contraponto às ações impulsivas e desordenadas dos berserkers e outros jarls (líderes guerreiros). Suas decisões precisas o tornam essencial na conquista de cada cidade.
“Mas Ivar estava no auge de sua ferocidade. Ou crueldade, eu diria. Seus berserkers pareciam tomados pelo efeito de cogumelos. Aquelas "camisas de urso", assim chamados por que costumavam se vestir com a pele desses animais, devoravam os habitantes da cidade como se fossem relva. Crianças eram arrancadas do seio das mães e seus corpos atirados contra as rochas que se transformavam em suas sepulturas, enquanto as mães eram massacradas e lançadas sobre os corpos ainda trêmulos dos filhos.”
O comportamento de Seawulf e seus subordinados, aos poucos, se distingue dos demais, como água em gordura. Enquanto os primeiros atentam a um primitivo bom senso, a cada conquista dos povoados e castelos, os outros bárbaros espalham o horror por pura vontade. Crianças e mulheres, todas mortas sem distinção. Uma trilha de corpos fatiados e catapultados para atemorizar o inimigo. Para mim, o cume da violência se deu em um ritual chamado águia de sangue, descrito de forma magnífica, mas que, de tão viva a cena, não ouso transcrever aqui. Então, por impor-se explicitamente contra os métodos de Ivar, é considerado como ameaça pelos próprios pares.
“Crianças choravam perdidas no meio dos destroços carbonizados daquilo que tinha sido seus lares. Corpos mutilados espalhavam-se pelo chão. A maioria não tinha tempo de se defender, e os que tentaram foram todos retalhados. Agora, os lobos humanos buscavam mulheres. Os gritos e choros deles enchiam o ar, me inundando de apreensão.”
Angus descobre que o mundo governado sob a égide das forças naturais é tão frio e cortante quanto o aço, e a única forma de resistir e ordenar tais forças é elevando o espírito em direção à virtude. Às portas da morte, o jovem guerreiro é salvo pelo monge Nennius. Ele é o responsável pelo ensino de cada virtude, em oposição às fraquezas que amaldiçoam o homem. Pessoalmente, o capítulo seis (A Abadia de Nennius) é o espírito de toda obra. Ali, um velho monge leva um jovem bárbaro à reflexão profunda acerca do propósito de sua vida, munindo-o com sabedoria necessária para tornar-se de fato um nobre guerreiro.
“Depois de dizer essas palavras, que, mais do que um ensinamento, pareciam uma ordem ou uma sentença, Nennius retirou-se calmamente. Era como se tudo ao redor, a pacífica capela, os monges com seu andar simples, os pássaros, o vento que soprava assobiando e acariciando os galhos das árvores, as montanhas firmes e longínquas, como se tudo tivesse ficado envolvido por suas palavras. E não só a natureza ficou. Eu também me vi tomado por toda aquela sabedoria.”
Por fim, confesso que nunca imaginaria me ver a considerar Angus uma obra original. Não no sentido de novidade, obra nunca vista, inventiva, ou algum ponto de partida germinal. Há nesta história evidente esforço em contar algo mais importante. Uma história que haverá de ser contada mesmo se for esquecida, como se a escrita escavasse a terra à procura da raiz mais profunda da árvore mais antiga. Tal qual Robert Ervin Howard, ao salientar o inequívoco conflito entre civilização e barbárie em sua série Conan, Orlando Paes Filho, a meu ver, demonstra de forma patente a transformação da brutalidade natural para a nobreza excelsa em que homem toma sua responsabilidade de guerreiro.
Orlando Paes Filho certamente é um autor de respeito, não só pela consistência histórica, fruto de evidente longa pesquisa, ou pelas belíssimas ilustrações feitas pelo próprio autor, mas também pela ousadia e crueza com que nos conta. Reitero que a narrativa flui com o vigor de um martelo modelando o metal bruto a torná-lo uma espada.
P. S.: Além da série Angus e spin-offs, os leitores poderão encontrar jogos de RPG e a trilha sonora para ambientação da série, produzida pelo próprio autor.
Angus - O Primeiro Guerreiro
Orlando Paes Filho
Bretanha, ano de Nosso Senhor de 863. Cidades e monastérios são deitados ao chão. Os invasores fazem frente aos maiores reis da Bretanha, tudo se torna árido pela devastação. A morte se espalha por toda parte. Mas há um guerreiro de nome Angus MacLachlan, que não
parece tombar diante dos ataques daneses. Ele não se curva aos dominadores nórdicos. Parece abençoado, luminoso, assim como luminosa é sua espada a espalhar cadáveres dos invasores.
Ele parece libertar os cativos e propor uma nova resistência. Ele parece unifi car reis. Um oponente terrível contra a invasão, que tenta destruir a Bretanha e seus reinos para sempre
Angus - O Primeiro Guerreiro é o início de uma trilogia medieval ricamente ilustrada, que mistura literatura fantástica com importantes fatos históricos da humanidade.
Orlando Paes Filho
Bretanha, ano de Nosso Senhor de 863. Cidades e monastérios são deitados ao chão. Os invasores fazem frente aos maiores reis da Bretanha, tudo se torna árido pela devastação. A morte se espalha por toda parte. Mas há um guerreiro de nome Angus MacLachlan, que não
parece tombar diante dos ataques daneses. Ele não se curva aos dominadores nórdicos. Parece abençoado, luminoso, assim como luminosa é sua espada a espalhar cadáveres dos invasores.
Ele parece libertar os cativos e propor uma nova resistência. Ele parece unifi car reis. Um oponente terrível contra a invasão, que tenta destruir a Bretanha e seus reinos para sempre
Angus - O Primeiro Guerreiro é o início de uma trilogia medieval ricamente ilustrada, que mistura literatura fantástica com importantes fatos históricos da humanidade.
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