"Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo — num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva — e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma — é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que “na ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior..."
(Fernando Pessoa in Cancioneiro - trecho da Nota preliminar)
Sexta-feira de chuva no Rio. Neste quase dilúvio de janeiro (segundo dia aqui na capital), nada como galochas e um livro para resistir ao tumulto aquático do trânsito e das esquinas. Há quase um ano, no dia dezenove, a paisagem úmida preenchia o blog através das páginas de inúmeros poetas; no dia de hoje, Pessoa é a voz que observo da janela, e com muito gosto compartilho com vocês.
Às vezes entre a tormenta
Às vezes entre a tormenta,
quando já umedeceu,
raia uma nesga no céu,
com que a alma se alimenta.
E às vezes entre o torpor
que não é tormenta da alma,
raia uma espécie de calma
que não conhece o langor.
E, quer num quer noutro caso,
como o mal feito está feito,
restam os versos que deito,
vinho no copo do acaso.
Porque verdadeiramente
sentir é tão complicado
que só andando enganado
é que se crê que se sente.
Sofremos? Os versos pecam.
Mentimos? Os versos falham.
E tudo é chuvas que orvalham
folhas caídas que secam.
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão comsossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...
CANCIONEIRO - Fernando Pessoa
L&PM Pocket
Com Cancioneiro, a L&PM dá continuidade à publicação da obra de Fernando Pessoa, que já conta com Mensagem, Odes de Ricardo Reis, Poemas de Alberto Caeiro, Poemas de Álvaro de Campos e Poesias, todos em formato de bolso.
Esta edição, organizada por Jane Tutikian, apresenta ao leitor os poemas assinados por Fernando Pessoa com seu próprio nome e que foram publicados esparsamente em periódicos. A escolha de “cancioneiro” para este conjunto de poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência simbolista, não é aleatória: cancioneiro é o nome dado ao conjunto de poesias líricas medievais, portuguesas ou espanholas, fortemente ligadas à música, ao canto e à dança. As poesias do Cancioneiro pessoano, por sua vez, estão ligadas à tradição lírica portuguesa, também têm um ritmo e uma métrica com grande musicalidade.
Nesta antologia, que reúne mais de 150 poemas, se destaca uma das suas mais famosas criações, “Autopsicografia”, que começa com os seguintes versos: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. O breve poema sintetiza a relação poeta/poema, separação que caracteriza a lírica moderna. Esta problemática acompanha quase que a totalidade da obra pessoana, na qual fica difícil identificar até onde vai o autor, a vida e a obra. Pessoa não teve uma história que se possa contar: teve várias, personificadas nas vozes dos seus heterônimos como Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, citando apenas os mais conhecidos.
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